Mas também havia vezes em que acreditavam na ilusão não só da segurança como da permanência.
G. Orwell
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Um homem como eu! Como é que acontece uma coisa dessas comigo!? A vida foi difícil, ah se foi... - Sussurrou um velho, desconhecido de todos ali presentes, mas não baixo o suficiente que alguém ao seu lado não pudesse ouvir o arranhar de seus lábios. O velho sentiu uma mão pousar suavemente sobre seu ombro, porém, mergulhado em si mesmo e em divagações sombrias, o leve toque dos dedos sob seu ombro lhe pareceu tão pesado como uma pedra tombando em suas costas. Voltou o rosto contra a pessoa que lhe incomodava e, com os olhos prestes a saltar das órbitas, fez a mulher que o interrompia se afastar, horrorizada. Só queria perguntar se estava tudo bem!, disse ela ao velho, no entanto quase sem mover os lábios. Como resposta, recebeu apenas um muxoxo da parte do velho. Mas como? Não morri?, disparou o velho, fazendo com que todos os rostos imediatamente se voltassem em sua direção, como uma fileira de metais atraídos por um único e poderoso ímã. O caixão descansava no centro da pequena sala como um basalto à beira de um penhasco com vista para o mar. Um caixão enegrecido, vetusto, envelhecido não pelas eras, mas pelos olhares que o trespassaram. O velho levantou-se de seu lugar como um animal assustado, depois, esbravejou no ar uma série de resmungos, e saiu da sala, lançando aos presentes reclamações descabidas. Ora essa! Pensei que se tratava de meu velório, mas não! É um homem que nem conheço, é um homem que nem é eu!!! - gritou o velho e apontou o dedo em direção ao caixão. Escutou, em seguida, um som de risadas que vinham do lugar onde estivera sentado antes, risadinhas agudas, quase fantasmáticas. Têm sapos aqui?, perguntou ele e correu para fora da sala, aterrorizado.
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Na saída, o velho bateu de frente com um homem que entrava. Após inúmeros pedidos de desculpas da parte do homem, o velho respondeu-lhe através de um salamaleque e saiu apressado, lançando a mão ao ar diversas vezes, como quem espanta moscas. Ó, um morto! - pensou espantado assim que adentrou completamente na pequena sala - quanto tempo não vejo um. Mas basta! Essa categoria de homens não é tão rara. O homem cumprimentou silenciosamente algumas mulheres e acenou para dois outros homens doutro lado da sala, avançou o território e sentou-se no lugar que pertencera ao velho. O silêncio era tão profundo que se escutava o arranhar dos pensamentos sendo engendrados na cabeça de cada homem e mulher ali presentes. Olhares se cruzavam, mãos roçavam nas paredes, mas nenhuma boca ousava romper o véu eclesiástico do ambiente. O homem, entediado, resolveu se ocupar analisando cada uma das figuras estanques da sala. Após inúmeras sondagens, chamou-lhe a atenção um rapaz doutro lado do caixão, que olhava fixamente para o chão, com olhares profundos e azuis, quase diáfanos. Este - ruminou o homem após um longo tempo observando o rapaz - Este com certeza tem gravado no coração um poema de Whitman, pode até recitá-lo a qualquer momento, mas é incapaz de recordar sua senha bancária. Que maravilha de expressão, de rosto, que olhar profundo! O homem levou a mão até as profundezas do bolso de sua calça e lá seus dedos encontraram um objeto e o trouxeram até a superfície. Um clique rasgou o silêncio em quatro, todos se sobresaltaram e olharam para todos os cantos, mas era tarde demais para descobrir o autor daquele barulho que se assemelhava com o disparo de uma câmera fotográfica. O homem, após meditar sobre cada uma das figuras, lançar sobre elas previsões não de todo descabidas - acusariam-no de astrólogo se pudessem ouvir os seus planeares - levantou-se de seu lugar e caminhou até a janela, com ares melancólicos. Ah! - disse baixinho - um morto! Afastou a persiana e olhou para a rua movimentada de carros. Um morto! - repetiu.
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O som de um passo perfurou o ar meditativo das pessoas. Todos olharam em direção à porta. Uma mulher entrou, e repentina e rapidamente sentou-se no lugar ocupado antes pelo homem. Sua roupa não era preta como a de todos ali reunidos e isso chamou a atenção de muitos - O que importa? - pensou ela - Luto! Luto! Como se não bastasse o morto, temos que engolir o luto! Esse pensamento brotou de seu cérebro de forma tão natural que ela temeu que tivesse sido ouvida por alguém. Levou a mão até os lábios e com ela ali permaneceu. Mãe, aquela mulher está fumando? - cochichou uma menina. As pessoas são sempre as mesmas... até nos velórios! Todos me olham, como se eu fosse o morto - pensou a mulher. Vestindo calças jeans e uma blusa branca, com os lábios rubros de batom e com uma flor vermelha espetada no peito, ela era uma verdadeira ruptura estética no ambiente. Seu olhar vagava como um besouro pela sala. Sua tez pálida chamava a atenção como uma luminária num ambiente escuro chama a atenção de insetos. De repente, cruzou as pernas e seu rosto adquiriu uma expressão de desdém, e com aquele gesto, audacioso nas palavras de alguns, eriçou a sala inteira, e por um ou dois momentos todos pareciam pássaros assustados, prestes a alçarem voo. Quem é? - perguntou uma mulher. Quem é o que? - replicou uma outra afetando ignorância. A mulher! A mulher com boca de fogo! - disse a primeira. Ah, ela? Deve ser o diabo que veio buscar o defunto. - respondeu a segunda. Valha-me Deus! - disse a primeira mulher abandonando a sala e lançando olhares terrificados em direção à todos. A mulher que, segundo os comentários de alguns presentes, chamava-se Helena, ficou espantada com o comportamento de todos, pois constatou não sem surpresa que a sociedade era a mesma até à porta do outro mundo. Soltou suspiros de enfado e abandonou seu lugar, saindo da sala. Que maluquice! - disse Helena de forma perceptível ao sair da sala - Que gente maluca! Parecem até... Parecem até... gente! Seu rosto assumiu uma expressão de horror.
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Burburinhos surgiram nos cantos da sala como fungos, aqui e ali pessoas comentavam a mulher estranha que acabara de abandonar a sala, outra metade da população geral da sala julgavam uma série de detalhes acerca do velório, e uma minoria, a saber, o homem da janela, continuava a suspirar calado. Crianças começaram a correr de um canto ao outro, mulheres sentavam-se e outras levantavam-se, alguns homens tomava café, outros fumavam, e um, apenas um, mascava chiclete. A mulher que havia fugido de Helena retornou a sala e voltou ao seu lugar. Os burburinhos cessaram repentinamente e houve um silêncio de morte na sala. Quem estava em pé voltou a se sentar e a maioria assumiu uma expressão mórbida no rosto, como se algo terrível estivesse prestes a acontecer. Uma moça olhava para o teto, indiferente ao clima geral. Outra, também apática a atmosfera que reinava no local, esquadrinhava o chão em busca de aranhas ou formigas, pois queria esmagar algo. De repente, uma senhora, com os óculos prestes a despencar do nariz, exclamou: Adoro batatas! Todos riram até as lágrimas. Mas a comicidade cessou quando outra mulher respondeu que não comia coisas que ficaram muito tempo debaixo da terra. Todos olharam imediatamente para o caixão e entreolharam-se envergonhados. Afinal, de quem é esse velório? - sussurrou uma mulher ao seu marido. Não é o seu? - respondeu o marido. Ora essa, deve de ser o seu! - replicou a mulher, enfurecida. Não, não é o meu! - respondeu mais uma vez o marido, cerrando os dentes. Então, deve ser o nosso! - gritou ela de forma tão estridente que toda a sala a escutou. O nosso! - disseram alguns. O nosso? - sussurraram outros. Todos empalideceram. Sim, o nosso! - disse o homem da janela se afastando dela e olhando fixamente para todos os presentes que imediatamente se levantaram e se aproximaram dele. Sorriam! - gritou o homem na direção dos presentes tirando uma câmera fotográfica de seu bolso e disparando um flashe em direção aos homens e mulheres que o olhavam embasbacados. O nosso! - disse ele abaixando a câmera e voltando o rosto para a janela.