sábado, 20 de fevereiro de 2010

Baudelaire e uma noite de sábado.


Dá um tempo, ó minha dor, controla tua agressividade.
Tu querias a noite; Aí está; ela vem descendo;
Uma atmosfera sombria já envolve quase toda a cidade,
Uns encontram a paz; outros seguem padecendo.
Enquanto dos mortais a multidão vil,
Sob o chicote do prazer, esse impiedoso carrasco,
Vai colhendo remorsos na festa servil,
Minha dor, me dá a mão, vamos por aqui, sem asco,
Ver, longe deles, debruçaram-se os anos defuntos,
Sobre os balcões do céu, usando velhos conjuntos;
Emergir a saudade, do fundo das águas, sorridente;
O sol moribundo adormecer atrás da arcada mansa,
E, como uma longa mortalha arrastando-se no Oriente,
Ouve, minha cara, ouve a doce noite que avança.


Charles Baudelaire, In Flores do Mal.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Tardes Secas

O sol parafusado no centro do céu. Tão fixo. Tão inabalável. Com um aspecto de que nunca irá se mover. É como se essa tarde fosse durar para sempre. As horas passam dentro dos relógios, mas não no mundo. É como se elas estivessem presas no pico dos ponteiros. Tenho sede e respiro com dificuldade. Estou atravessando uma rua movimentada, muitos carros, muitas pessoas, e outras tantas sacolas vazias que flutuam sob as calçadas. Sinto que caminho sob um deserto e que tudo a minha volta são cactos. A vida é assim nessas tardes secas. A solidão esvazia o corpo de suas ilusões, e elas escorrem pelas frestas da pele, mescladas no suor da gente. A solidão também quebra a lente onírica dos olhos e de repente tudo que antes era a cidade, com suas pessoas e seus prédios, agora não passa de um vasto campo vazio. É a vista que se tem quando se olha ao redor através das lentes escuras do óculos da vida. É a solidão do corpo que me apavora. A solidão de estar sozinho dentro de mim mesmo. Não poder dividir os pulmões com nenhuma outra traqueia que não seja a minha. A voz dos pensamentos ecoa no vazio das grandes cavernas do peito. Atravesso a rua, chego noutro lado e ao virar numa esquina me deparo com o mundo espatifado no chão. Volto o olhar para as ruas e as pessoas surgem novamente, como que saídas de esconderijos, de tocas no asfalto quente. Continuo caminhando e transpasso outras ruas. Não sei bem para onde vou, mas continuo. Continuo o caminho nessas tardes secas, nessas tardes secas, nessas tardes secas. O sol parafusado no centro do céu.
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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Panegírico à finitude

Tombou o Romance das alturas e espatifou-se no chão em uma centena de pedras. Com a pretensão de um grande império que soçobra em meio à guerra, o romance fez alarido em sua queda, querendo acordar as grandes mentes para fazer surgir uma obra que edificasse seus pormenores. Que ingenuidade! Nenhuma Roma foi queimada, e sim um casebre ridículo, feito a partir de troncos de árvores e palha para o teto, uma cabana de ilha deserta. Nenhum estrondoso poeta ou belicoso filósofo coletou seus cacos, mas sim um menino que passava por ali por engano e reagiu a queda do Romance com susto, resolvendo verificar o acontecido. O Romance contraíra sonhos humanos, pois fora feito por um homem e não por um animal. Se feito por um animal, um romance reagiria com mugidos ou fazendo os dentes espumantes emergirem das mandíbulas diante do fim iminente. Mas não! O Romance feito por um homem reagiu como um homem diante do fim iminente, suspirou e fez saltar de si a fagulha primordial dos homens, a centelha que aspira à eternidade. O Romance morreu e seus fragmentos agora se encontravam igualmente espalhados pelo chão no quarto do menino que o coletara. O Romance caíra de uma estante antiga. Ele todo era infestado por fungos e antigos suspiros outrora descarregados sobre suas páginas. O menino desdenhou os papeis, e foi para o quintal consumir sua infância, como um bom senhor traga um cigarro deliciosamente. O Romance ficou esquecido e nunca chegou até ele o tão esperado terceiro dia, quando os mortos voltam à vida por um aparato mágico de certo deus seletivo. Ele não fora escolhido pelo deus dos homens e não causaria nenhum revolução no meio deles. O Romance estava triste e morto. Os mortos não sentem tristeza, os mortos não sentem nada. Querendo igualar-se aos mortos, o Romance resolveu calar seus sentimentos e arrebatou para si aquilo que ele elegera como a matéria mais abundante do mundo: o silêncio. O silêncio que era material negligenciado pelos homens fez-lhe companhia por toda a eternidade. O menino cresceu e tornou-se um homem de negócios, nunca tocou nos fragmentos do Romance esquecidos no quarto e em nenhum outro fragmento. O homem que ele se tornara era homem das grandes coisas, e o pequeno, o minúsculo era-lhe indiferente. Foi assim que ele resolveu em si que abraçaria todo o mundo e não suas particularidades. Morreu sem conseguir realizar o sonho, que era ser presidente do país e futuramente uma espécie de governador do mundo; nada além de uma reminiscência da infância estúpida que levara e que o perseguiu por toda a vida. O homem nunca se tornou homem, apenas o seu organismo era quem tinha inflado, envelhecido e depois massacrado pelos anos; o homem não surgiu quando o invólucro da experiência, aquela que é a mais sórdida das mentoras, se quebrou. Nada escorreu dali além da matéria evanescente de que são feitos os sonhos. A névoa nunca deixou sua vida e ele olhava para o mundo através de um caleidoscópio que ele confundira com um binóculo ou com uma lupa. Sumiu como o Romance, à beira do mundo. Aspirando um grande destino. Teve um filho, deixou no mundo a sua semente, extraída da árvore de sua grande miséria. Os frutos apodreceram junto a ele - eis a aventura de toda uma raça em eterna extinção.