segunda-feira, 19 de abril de 2010

Os bastidores.

"E vou vestido de você também, até que a vida nos separe, para sempre."

Pedro Torraca.


Como tudo o que é moderno, as preparações eram cinematográficas, e até o vento que soprava fortemente lançava a suspeita de uma falsidade climatológica, como se ao longe quem erguesse os olhos pudesse ver, ao lado do sol, que talvez fosse um holofote, um grande ventilador - um cemitério e um grande cortejo fúnebre, seguido por uma canção doce de violino (sonoplastia) e uma camada cinzenta de pessoas (figurantes) que revezavam o peso do caixão para arrastá-lo de vez para a cova.

E o cemitério era um grande campo verde. As covas abertas, vistas ao longe, eram como buracos redondos e minúsculos na terra, e ninguém negaria que o locão das gravações se tratava de um campo de golfe. O cheiro do café, do chá e da morte espalhados pelo ar, mesclados numa atmosfera que se pretendia rarefeita. E o corpo balançando dentro do caixão, tremulo, como uma letra que é vista por um astigmático. Faltaram pierrôs e alguns animais de circo, mas não a música. Essa era soprada pelo violino e chegava até todos nós como se fosse produzida pelas árvores, e não por um homem de semblante fechado que tocava lacrimosamente seu instrumento.

E a marcha humana seguia, tendo como líder de percurso o caixão, que ditava ordens mudas. Os corpos quase não existiam, etéreos como as nuvens, e tão oscilantes quanto elas mudavam de forma rapidamente, e aspectos sombrios se intercalavam com aspectos tragicômicos. Os gregos não teriam tamanha criatividade para produzir uma comédia como os enterros. Essas super produções. Aclamados pela crítica e alvo de lisonjas do público. Esse avesso da vida. Mas tudo é tão sublime. A música do violino, o vento soprando forte espalhando os cabelos, a ameaça constante de chuva, as árvores ao longe, que são pagas para balançar os galhos, e as efígies fantasmas que se formam aqui e acolá, transfiguradas em pura dor.

E quando o caixão chega e para diante da cova aberta, o mundo inteiro retrocede, e todos os olhos lançam uma luz sob o gramado verde, exibindo filmes. Os olhos, esses perfeitos projetores. A fotografia é impecável. Todas as cortinas se abrem e o mise en abyme surge no palco, monstruoso. O caldeirão das cabeças, fervilhando imagens, num ato de bruxaria. A cova aberta tem dentes, mastiga todo o torrão de terra que rola para dentro dela, e cospe de volta sua saliva viscosa, que como a teia da areia, quer arrastar todos que se aglomeram em torno para o centro. O caixão é finalmente entregue para a boca gigantesca, e diante do prato principal servido, o diretor corta a cena. Todos estão dispensados.

E eu permaneço ali, parado diante da cova aberta que mastiga a terra vermelha. E imagino um pássaro dentro de uma gaiola que de repente foi aberta, tendo diante de si uma janela para fugir. E esse mesmo pássaro se volta para o fundo da gaiola, tremelicando de medo e frio. E também eu sou um pássaro com a gaiola aberta diante dessa cova.

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Portrait of Anna Akhmatova



Não, não sou eu, é alguém mais que sofre.
Eu não teria podido. Panos negros de lã cubram
o que se passou,
E levem embora os lampiões,
Noite...




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