sexta-feira, 30 de julho de 2010

A Viagem - Fragmento


"A manhã estava quente, e o exercício de ler deixara sua mente contraindo-se e expandindo-se como uma mola principal de um relógio. Os sons do jardim lá fora uniram-se aos relógios e aos pequenos rumores do meio-dia, que não se podem atribuir a nenhuma causa definida, todos num ritmo regular. Era tudo muito real, muito grande, muito impessoal, e depois de um ou dois momentos ela começou a erguer o dedo indicador e deixá-lo cair sobre o braço da cadeira como se trouxesse de volta alguma consciência de sua própria existência. Em seguida foi tomada pela estranheza indizível com relação ao fato de estar sentada numa poltrona, de manhã, no meio do mundo. Quem era as pessoas movendo-se na casa... movendo coisas de um lugar a outro? E a vida, o que era aquilo? Era apenas uma luz passando na superfície e desaparecendo, como ela mesma com o tempo desapareceria, embora os móveis do quarto fossem ficar? Sua dissolução tornou-se tão completa que não conseguia mais erguer o dedo, e sentou-se totalmente quieta, olhando sempre o mesmo ponto. Tudo se tornava cada vez mais e mais estranho. Foi assaltada pelo assombro de que as coisas talvez nem existissem... Esqueceu-se de que tinha dedos para erguer... As coisas que existiam eram tão imensas e tão desoladas... Continuou consciente dessas vastas massas de substância por um longo tempo, o relógio ainda tiquetaqueando no meio do silêncio universal."

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Virginia Woolf, em A viagem. Pag. 194


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terça-feira, 27 de julho de 2010

O sujeitinho excêntrico da caverna

Talvez seja mais importante sentir que entender.
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No inferno o tempo não passa!, - foi a primeira coisa que ele disse ao sair da caverna. Porém, ao sentir o sol queimar-lhe o rosto, o vento a soprar contra suas narinas o perfume da vida, e, finalmente, ao sentir o tempo tombar sobre ele e recuperá-lo definitivamente, logo se apercebeu aterrorizado de que do momento em que a pedra despencou e o trancou na caverna até o momento em que escutaram seus gritos de garça desesperada e o libertaram só escorreu uma hora da grande ampulheta universal dos sistemas. Mas juro para vocês que fiquei trancado lá dentro por no mínimo mil anos! - Disse ele com a voz um pouco fraca, ainda arquejante, aos três guardas florestais que o haviam libertado da caverna. "Que história misteriosa" - pensou o primeiro deles - "Uma boa história para contar à Ana e ao Frederico. Será que estão bem? Sinto saudades, mas compreendo, ah!, compreendo que no fundo no fundo estão bem melhores com a mãe." - Definiu seu pensamento e olhou as folhas verdes das árvores, melancólico. Rapazes! Meus bons rapazes! Muito obrigado! Muito obrigado! - gritou alegremente o ex-prisioneiro da caverna para os três guardas florestais, dando pulos de alegria, rodopiando no ar com piruetas que pássaros invejariam, dando beijos molhados nas bochechas rosadas e frias dos três homens. "Sujeito estranho, afetado, merecia ter ficado trancado para sempre!" - Pensou o segundo, olhando com desdém para o "sujeitinho excêntrico da caverna", como ficara conhecido o homem a partir deste dia. O terceiro, o mais jovem dentre os três guardas, de nome desconhecido, pois todos os crachás estavam virados ao contrário, era o único a mostrar em seus lábios um ricto de sorriso contido. Talvez o rosto sério dos outros dois e o comportamento espasmódico do ex-prisioneiro o advertisse que era melhor disfarçar a enorme vontade que ele tinha de soltar gargalhadas. Foi então que ele perguntou ao homem excêntrico, abrindo a boca sem disfarçar a risada que escapava dela como um pássaro escapa da gaiola:
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- Senhor! - hesitou um pouco, depois continuou - Mas senhor, o que foi fazer lá dentro?
- Curiosidade! - Respondeu o homem.
- Curiosidade em que, meu Deus? Como vê, é apenas um buraco. Nem sequer tem as belezas de uma gruta ou o ar pitoresco de um sítio arqueológico. Por acaso viu aí dentro pinturas rupestres ou fósseis pré-históricos?
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Os dois guardas florestais olharam com espanto para o terceiro, e o homem, sorrindo, respondeu que, na verdade, havia se escondido de um urso que começara a persegui-lo pelo bosque todo.
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- Impossível senhor - mais uma vez o jovem guarda - Não existem ursos aqui. Nunca vi um urso em toda a minha vida! E se o senhor me dissesse que viu fadas ou gnomos acreditaria mais.
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Os outros dois guardas continuaram a olhar espantados para o companheiro. E o homem, sem interromper o sorriso, respondeu-lhe que corria de ursos que não se veem, pois são ursos fantasmas. Nesse momento os outros dois guardas florestais soltaram gargalhadas tão estridentes que ecoaram por todo o bosque, fazendo, ao longe, pássaros erguerem voo de seus ninhos e capivaras se esconderem em suas tocas. O jovem guarda, ao contrário, não riu, escondeu o rosto luminoso de antes e repôs em seu lugar uma face sombria, misteriosa:
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Fantasmas. - disse ele, quase imperceptivelmente.
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O homem sorria em demasia, seus dentes emergiam da gengiva como ossos lustrosos, e a luz solar, que desaparecia gradualmente, lançava sobre esse sorriso os seus últimos raios, fazendo o rosto do homem assemelhar-se antes a uma caveira recém-descoberta na caverna que um ser vivo.
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- Talvez você seja um fantasma e por esse motivo vê fantasmas - disse o jovem, agora em voz alta, enquanto os outros dois guardas intercalavam gargalhadas com caras de espantos em direção ao companheiro.
- Senti tanto medo trancado dentro daquela caverna, senti fome e sede, e por um ou dois momentos achei que ficaria para sempre lá. Então, como posso ser um fantasma? Fantasmas não sentem nada, talvez apenas andem por aí a perseguir pessoas, só. Não sou um fantasma, meu caro, não graças a vocês que, com a força dos heróis (os dois guardas fizeram ouvir um breve ronco sair de suas bocas, talvez prelúdio de mais uma das gargalhadas) me salvaram das garras do Hades que encontraria se ficasse preso nessa caverna - ele girou o rosto e fitou o buraco da caverna.
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O jovem guarda ouviu atentamente, aproximou-se mais do homem, olhou-o com ternura. Um vento forte passou por todos eles, e virou os crachás com sua força para o lado correto, revelando ao homem o nome de cada um dos guardas. Mas ele só prestou a devida atenção ao jovem e descobriu, inscrito no crachá como em letras de um alfabeto antigo, o nome Homero Silva. Foi como se a névoa que cobria o rosto de cada um deles se dissipasse, revelando a todos os outros a máscara antes escondida por baixo do cinza escuro da falta de hábito.
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O homem aproximou-se mais do jovem, cravou os olhos arregalados no crachá, deslizou os dedos na foto 3x4, tamborilou a ponta da unha sob a foto e, erguendo os olhos, fitou o rosto do rapaz. O rapaz sentiu o terror fremitar em seus nervos e recuou. Quando os últimos raios de sol dardejaram contra o rosto do homem, o jovem guarda pôde ver, escorrendo de um dos olhos, uma lágrima que caiu na relva como uma gota de chuva, perdida para sempre. Os outros dois guardas entraram em êxtase de espantos e cada pergunta que surgia em seus cérebros era engolida por outra que surgia concomitante. Foi então que o homem se ajoelhou aos pés de Homero, abraçou-lhe as pernas e, ainda chorando disse, fitando o rosto do jovem, com uma voz que parecia sair antes de seus olhos que de sua boca:
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- Foi Zeus quem te mandou aqui!
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quarta-feira, 21 de julho de 2010

Estátua

Celebro o escuro
Abismo das coisas
Que nos movem.

Deixo o tempo cortar
O que restou do espaço
Que separa.

Acendo a chama do perigo
Entre a areia e a praia.

Quebro com meu martelo de ar
O maniqueísmo dos mundos
Festejo na lama com os porcos
A liberdade dos Efebos.

Do outro lado a luz incessante
Do passado vem quebrar na orla
O presente e o erótico eflúvio
Do futuro explode no ar, borrifado.

Pesco do fundo de mim outro
Homem que nunca fui e reponho
Sob sua face a máscara que sempre
Me pertenceu.

Deixo de ser eu para ser eu.

Celebro o escuro
Abismo das coisas
Que nos movem.

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segunda-feira, 12 de julho de 2010

Vertigem

Com a caderneta e a caneta em mãos, Heberto chegou ao local do acidente. Uma nuvem de pessoas borrava - como uma mancha de tinta negra isolada no canto de um papel pardo - o lugar e era quase impossível transpor a multidão sem se confundir com ela, ao ponto de se perder a própria identidade e se mesclar ao todo, se tornar indivisível com ele. Porém, Heberto estava à serviço, não podia estancar diante do ocorrido como todos, e esses outros observavam a cena como se essa fosse uma pintura indiscutivelmente imóvel e terminada sobre uma tela, mas ele, ele precisava ultrapassar o posto da pessoa que simplesmente observa e se cala e pular direto para o posto da pessoa que observa, depois organiza o que viu, descreve e finalmente anuncia o ocorrido como quem anuncia em um comercial as qualidades de um automóvel ou a eficácia de um sabão em pó. Atravessando a multidão ele ia - como um explorador que cruza uma floresta - ceifando com as mãos as pessoas que impediam seu caminho - como se ceifasse folhas de bananeira ou relvas gigantes - seguia corredores estreitos de pura pele e suor, batia o rosto contra cabeças desconhecidas, sacudia os próprios cabelos com o medo de ter pego piolhos como se com esse gesto pudesse afastá-los, sufocava-se dentro da multidão, afogava-se entre as pessoas, depois emergia o rosto à superfície, respirava e mergulhava de novo. Finalmente chegou ao núcleo da multidão, parou diante do corpo coberto por uma lona negra e sentiu-se mal.
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Seus dois grandes olhos verdes saltaram das órbitas, sua pele enrijeceu, adquirindo o aspecto de uma pele de anfíbio, fria e viscosa, e, quando pegou a caneta e tentou escrever algo na caderneta viu sua mão tremular, sair da órbita de sua visão, sentiu que perdia o controle sobre os seus dedos, dedos que se remexiam tresloucadamente no ar como se a datilografar sob o teclado de uma máquina de escrever invisível. E como o tremor de sua mão era como que o epicentro, o anúncio de algo maior, de um terremoto, viu-se, de repente, envolvido em uma catástrofe geológica. De dentro de sua pele ele ouviu sair um estampido, o anúncio de que as placas tectônicas de sua vida estavam a se mover, destruindo velhos platôs, engolindo paisagens e devastando os vilarejos tão seguros de suas antigas convicções. "O que é que eu estou fazendo aqui? Por que terminei esse maldito curso de jornalismo e embarquei nesse barco furado? Que merda! O que significa ser essa espécie de anjo que anuncia todas essas mortes através dessas trombetas eletrônicas? Não! Não! Impossível!" O cameraman sacudiu Heberto no meio da multidão e disse-lhe para continuar, para dar dois passos contra o corpo ensacado e escrever na "maldita caderneta!" todas as informações que pudesse coletar. Ouviu-se um barulho estridente de sirene, o corpo de bombeiros chegava, anunciando em vermelho a ajuda que não era mais necessária. Os homens saíram de dentro da ambulância e correram em direção ao corpo inerte, um deles retirou de cima do corpo o manto que até então o ocultava, revelando assim, diante dos olhos de Heberto e de toda a multidão, a deformação que até então escondia-se abaixo da lona negra.
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Heberto tremulou quando a cortina subiu e revelou à seus olhos o corpo morto que, quando Heberto olhou melhor, bem poderia ser o corpo de um cachorro ou de um porco. O cameraman empurrava as costas de Heberto com o canhão da câmera e dizia-lhe palavras indecifráveis, palavras que chegavam até seus ouvidos como ondas sonoras imperceptíveis que só um morcego pudesse decifrar ou uma antena de rádio. As pessoas em volta se moviam com lentidão diante de Heberto e o tempo, tão veloz, parecia parar lentamente de se movimentar e - como um carro que atingiu uma alta velocidade e é bruscamente freado pelo motorista, derrapando na pista - o tempo derrapava sob o corpo de Heberto. "Anda babaca!" - gritava-lhe o cameraman, machucando a cabeça de Heberto com o canhão da câmera. Os bombeiros ergueram para o alto o corpo mutilado na maca e, nesse momento, Heberto foi acidentalmente jogado pelo cameraman contra o núcleo do círculo e caiu frente ao corpo, abrindo os olhos em seguida, deparou-se diante do rosto deformado do corpo, e dois olhos arregalados se encontraram com os seus. O mundo inteiro se fechou sobre ele, trancafiando-o como se dentro de um ovo. Hebertou despencou contra o asfalto, tombando exatamente no mesmo lugar que a vítima do acidente ocupara até então. Seu rosto, caindo de lado no asfalto, encontrou o restante do rosto da vítima e esses dois pedaços de rosto se acoplaram, formando um par de contrários, como um ying-yang orgânico, dividindo-se em uma parte morta e em outra viva. Caído no chão, ouviu um burburinho de vespas ao seu redor e dentro do burburinho a palavra "Idiota!" saiu voando até pousar em seus ouvidos. Um silêncio se fez e ele virou o seu corpo e depois o seu rosto de encontro ao céu. As nuvens vermelhas, o fim do dia, o ocaso cada vez mais denso deu-lhe a sensação que o mundo inteiro estava em chamas e que a boca do céu se abria constantemente para cuspir contra a terra bolas de fogo e desesperança.
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domingo, 11 de julho de 2010

O Espírito Da Colméia - 1973




"Alguém a quem havia recentemente mostrado minha colméia de cristal, com o movimento de sua roda tão visível como a roda principal de um relógio. Alguém que via as constantes agitações dos favos de mel, a agitação perpétua, enigmática e louca das abelhas enfermeiras sobre os ninhos, as pontes e escadas que formam os alvéolos de cera, as espirais invasoras da rainha, a atividade variada e incessante da multidão, o esforço desperdiçado e inútil, as idas e vindas com uma dor febril, a insônia sempre ignorada que anuncia o trabalho da próxima manhã, e o repouso final da morte, longe de uma residência que não admite enfermos nem tumbas. Alguém que observou essas coisas depois de passado o assombro inicial, rapidamente afastou os olhos onde se via indescritível espanto."


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segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Desprezo, de Godard.





Um filme sobre filmes e seus diretores. Sátira à arte grotesca hollywoodiana, mas acima de tudo, um filme que denuncia a confusão babélica entre os seres humanos e a falência da linguagem em traduzir a fisiologia do corpo. Um filme sobre deuses e homens, sobre a relação entre mito e realidade e de como os dois campos se misturam até se confundirem permanentemente. A luta do homem contra a força arrebatadora do símbolo e a subversão deste em arma contra o próprio mundo. Um filme humano como poucos o são.
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