quarta-feira, 24 de março de 2010

Discurso sobre o método.

O silêncio, este frasco prateado, que possivelmente foi esculpido por um ourives na Mesopotâmia, contém mais palavras que o dicionário. As palavras, mais antigas até que o próprio silêncio, talvez tenham sido criadas por artífices ociosos na pré-história. O fato é que não possuímos dados historiográficos suficientes acerca da gênese desses artefatos, diferente da fotografia de Adão e Eva, cujo negativo todos têm em casa, nas gavetas. O que temos em mãos são suposições, palpites, palpitações. O frasco antigo do silêncio tem nos tomado muito tempo de estudos e exigido de nós a mais atenta e minuciosa atenção nesses últimos séculos. Sabem vocês, colegas, o tempo que há dentro de um século? Dissequemos, então, um exemplar. Vejam: um século contém exatamente seis átimos. E o que podemos fazer com esses seis átimos cuja descoberta foi proporcionada pela nossa fabulosa técnica de vivisecção? Ora, quando estamos no laboratório, pesquisando o misterioso frasco in vitro e cai sobre nós a poeira da solidão, podemos dividir esses seis átimos entre nós, caros amigos, de forma criativa. Venhamos à divisão: três, dos seis átimos, podem ser embebidos no vinho e sorvidos deliciosamente, e por uma questão de economia, dispensemos os quartzos, e usemos o gomo das mãos para experimentar tão fortificante elixir. A embriaguez, como bem sabem, afasta os pássaros negros da mente, evitando assim um certo estado melancólico de humor. Há teorias que dizem ao contrário, comentam, a partir de estudos lógicos de observação do pensamento, que, quem se afasta não são os pássaros, mas sim os pensamentos, que são deslocados para um estado além, que a famosa teoria chama ousadamente de limbo. Mas deixemos, meus bons senhores, a especulação metafísica aos platônicos. Dos outros três átimos faremos uma tabacaria, que acham? Não pensem vocês, velhos meticulosos, que existe receita para isso. Isso é coisa de inspiração, coisa dos líricos. Enrolemos os três átimos em pequenos papéis, evoquemos o espírito de Homero, e voilá: temos poemas novíssimos. Só nos restando, como última tarefa, tragá-los. O que ensino aqui, meus amigos, é como passar o tempo de forma saudável dentro desses séculos vindouros. Sabem vocês, que durante esses séculos, teremos todos que permanecer no laboratório, não o sabem? É preciso decifrar a escrita cuneiforme sob o frasco do silêncio e isso levará muitos decênios de nossos corpos. Ignorem, por enquanto, as palavras que vivem dentro do frasco, essas são por demais hieroglíficas e a coisa certa a fazer, por hora, é importarmos os psicanalistas - estes famosos sábios do Oriente Médio que aprenderam com um comerciante Grego a arte da hermenêutica - para que com elas possam trabalhar. O silêncio é o maior mistério de todas as civilizações que existiram e que existem, senhores! Maior até, em matéria de mistério, que as pirâmides do Egito e que os Moais da ilha da Páscoa, e pelo bem da ciência, é preciso descodificá-lo. Trabalhemos, pois, sob este frasco. O caminho é longo e a vida, como bem sabemos, é curta. A arte de nosso ofício é uma extremófila e ultrapassa em número e grau a existência do organismo. Mas edifiquem esses rostos, meus colegas, e não esqueçam de cachimbarem, nos intervalos de nossa querela, os poemas homéricos e de sorverem os átimos dionisíacos de nossos séculos.
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quarta-feira, 17 de março de 2010

O mundo pós-aniversário.

Um passo adiante e sinto o planeta retroceder. Gira ao meu redor, como ponteiros, esses milhões de astros, e meu antropocentrismo joga nas mãos deles o destino que inventei para me curar da falta deste. O calendário se desfaz, os dias de papel se esfarelam e eu vou adiante, seguindo o caminho astrológico da precisão. A aurora que chega se bifurca, inventa escolhas, mente revelando uma verdade. E as horas que até então só existiam no relógio saltam de dentro dos números e tombam na realidade, tombam sobre a pele da noite, sobre as estrelas que, com a chegada destas, se liquefazem. Meus nervos lutam para que o dia de hoje não seja uma réplica perfeita do dia de ontem, não! não quero clonagens. É preciso reinventar algo. É preciso reinventar a roda, o fogo, o mundo. E se a máquina que nos atrela continuar a insistir em me levar junto dela, em suas engrenagens, eu juro, eu juro que boto fogo nela, porque do espírito de Nero me vejo possuído. E como o primeiro homem que surgiu sob a superfície da terra, eu vou gritar, mesmo sem saber se o que gritarei terá um significado. Vou gritar por esporte, por sadismo, por pura perversão; quero ver o silêncio sofrer. Dois passos adiante e sinto a História retroceder. Sinto uma vida inválida, nula, rasgada. Sinto um sol queimando um mundo, não sei que sol é e nem que mundo é. Dou-lhe nomes, mas isso não lhes tira a falta de sentido. Enxerto almas em todas as coisas que me aparecem pela frente. Vou seguindo. Dando nomes, enxertando almas, fabricando escolhas. Tomo das pernas da aranha a sua arte: quem tecerá destinos, agora, será eu, e não os astros. Enterro mais um ano de pura fatalidade. Ora, e não é um acidente ainda estar vivo?
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