quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A Polaróide

Eles escutaram um ruído, um ruído de algo sendo arrastado pela folhagem do Jardim. Pensaram eles que o barulho era causado pelos animais do Jardim, mas não imaginavam que naquele dia o próprio Deus faria uma vistoria pelo Éden, e foi com grande surpresa que ao saírem correndo do bosque trombaram contra o manto sagrada da Divindade sem rosto, que por ali se arrastava naquele momento, como uma cobra. O homem, conhecido pelo nome de Adão, tremendo de medo com esse encontro, abraçou fortemente a mulher ao seu lado, que era conhecida pelo nome de Eva, mas bem poderia ser Lilith ou Pandora ou Helena ou Medeia ou qualquer outra femme fatale dessas. Fato foi que a mulher, diferente do homem, não teve medo, e encarou a Divindade em todo o seu esplendor, quase ficando cega diante do brilho que emanava do lugar onde deveria estar o rosto da Criatura. Poderia ela em toda a sua ousadia de mulher evocar versos contemporâneos, exortando a Divindade a mostrar seu olho, seus dentes, ou mesmo sua língua, mas ela apenas encarou o sol diante de si, e a Divindade, indiferente em toda a sua potência, apenas continuou a passagem, desbravando com uma foice de caçador a mata a sua frente, coisa desnecessário, visto que com um único Fiat ela faria aparecer estradas fabulosas diante de si.




Adão, tendo uma vez percebido a ausência do Deus, se desgarrou do pescoço de Eva, ainda tremendo muito, e sem entender muita coisa, voltou correndo para o bosque, deixando a mulher para trás. Eva resolveu seguir a Divindade, pois se via presa de uma sensação que não sabia dar nome, mas que sabia sentir. E no seu conhecimento, ela averiguou com ar científico que essa sensação lhe causava cócegas, que a impelia a mexer os dedos dos pés, a disparar um passo após o outro, e dentro de toda essa querela de averiguações, quando deu por si, estava novamente diante da Divindade sem rosto, pisando inclusive sob o seu manto sagrado, impedindo de vez que a poderosa Criatura se movesse espontaneamente pelo Jardim. A Criatura uma vez muito espantada com a ousadia de animal curioso de Eva, se encantou com essa inocência, e ante o brilho dos olhos de Eva, que eram nada mais que reflexos de seu rosto fulgurante, resolveu em um ato de contemplação sacar de seu manto uma máquina fotográfica muito espantosa, e apontando-a em direção a Eva, disparou contra ela um flash fulminante, que deixou a ousada mulher assustada, fazendo-a correr de volta para o bosque em procura de seu Adão. A máquina fotográfica era uma polaróide, e de imediato imprimiu a bela fotografia de Eva, que a Divindade guardou com muito carinho junto a máquina fotográfica que era devolvida ao manto.




Nesse mesmo dia e nessa mesma hora, essa mesma divindade plantava no centro do Jardim uma semente misteriosa, que dentro de alguns dias se tornaria uma árvore grandiosa - e, diga-se de passagem, uma das árvores mais famosa da História da humanidade - com imensos frutos vermelhos. A Divindade, mais uma vez encantada diante de sua criação - como uma criança após construir um castelo na areia ou após resolver um complicado quebra-cabeça - se viu tomada de um orgulho paterno pela árvore e ordenou aos seus filhos, Adão e Eva, que daquela árvore nenhum fruto poderia ser consumido, deixando com eles um opúsculo que ditava regras de como cuidar do vegetal mimoso. A Divindade, muito desconfiada de suas criaturas como um pai desconfia da criança que olha fixamente para o doce no alto do armário, deixou como precaução seu cajado para que da árvore esse tomasse conta. O cajado do Deus, muito seduzido pela beleza da árvore, que também poderia ser chamada de Eva ou Lilith ou Pandora ou Helena ou Medeia, se transformou num animal rastejante, e pregando-se uma vez na árvore, resolveu passear por todos os seus galhos hirtos, que provocavam em sua pele deliciosas sensações. Eva, que sempre se escondia na moita para admirar a formosura da árvore durante o dia, acompanhou de perto toda a metamorfose do cajado em serpente e toda a sua lascívia de então para com a árvore. O chamego entre os dois era tanto, que num dia desses no Éden, a árvore deixou cair sob o matagal um de seus frutos, que aos olhos de Eva se tornou uma pedra preciosa, seduzindo assim a corajosa mulher a se lançar no mato e coletar o fruto.
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Eva o levou para o bosque, onde morava com Adão, e para que o homem não visse o seu tesouro, escondeu ele numa moita especifica, aonde ela ia todas as manhãs admirar a beleza e o brilho daquela jóia vermelha. A Divindade, que tinha olhos espalhados por todo o Jardim, não deixou esse capricho de Eva impune. Irritada como uma enguia, ela foi um dia procurar por Eva, e sem qualquer hesitação ou meditação, lançou em suas mãos a bela fotografia tirada muitos dias antes. Eva, que não entendia nada daquilo, apenas pegou a fotografia e a olhou, indiferente. O Deus furioso sacou de seu manto um espelho, e o entregou de muito mau humor para Eva. Essa, ignorante em tudo aquilo, apenas olhou o pedaço de quartzo com calma e indiferença, mas qual não foi a sua surpresa ao perceber que esse vidro refletia sob sua superfície fria a mesma imagem que ela via todas as tardes quando ia coletar água no lago do Éden. Eva se descobriu ali, nua e envergonhada, diante da Divindade, do espelho e da fotografia. Correu em lágrimas na direção de Adão, e se escondeu atrás do corpo dele, muito triste e sentindo vontades de se esconder atrás das plantas, das árvores, dos animais, com uma imensa sensação de querer penetrar no lago e nunca mais sair de dentro dele. A Divindade, muito inescrupulosa em sua vingança juvenil, coletou o fruto da moita, arrancou dele um pedaço grande e se juntando a Adão, acusou Eva de ter desrespeitado as leis gerais do Jardim, tendo roubado da árvore que lhe era tão cara um de seus frutos. Adão, escandalizado com a impostura da Divindade, retrucou, exigindo direitos de defesa diversos. A Divindade, impassível em sua decisão, condenou ambos ao exílio, e assim foram expulsos do Jardim esses nossos antigos avós, que deram inicio ao mundo. Nascidos sob a égide suspeita dessa Divindade e depois lançados no deserto da vida como dois desafortunados. Não é de se espantar que ambos tiveram os nomes retirados do testamento glorioso do Deus. A fotografia de Eva nunca foi encontrada, mas revistas importantes da atualidade já empreenderam buscas estupendamente caras na esperança de achar essa raríssima polaróide.
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