quarta-feira, 30 de junho de 2010

Fragmento - O caminho de Guermantes


"As pessoas de gosto nos dizem hoje que Renoir é um grande pintor do século XVIII. Mas, dizendo isso, esquecem o Tempo e que muito precisou decorrer, mesmo em pleno século XIX, para que renoir fosse saudado como um grande artista. Para desse modo conseguirem ser reconhecidos, o pintor e o artista originais procedem à maneira de oculistas. O tratamento pela sua pintura, pela sua prosa, nem sempre é agradável. Quando está acabado, o clínico nos diz: "Olhe agora." E eis que o mundo (que não foi criado só uma vez, mas tantas vezes quantas aparece um artista original) nos surge inteiramente diverso do antigo, mas perfeitamente claro. Mulheres passam pela rua, diferentes das de outrora, visto que lidamos com Renoirs, esses Renoirs onde nos recusávamos antigamente a ver mulheres. As carruagens também são Renoirs, assim como a água e o céu: temos vontade de passear pela floresta idêntica à que no primeiro dia nos parecia tudo, menos uma floresta, e como, por exemplo, uma tapeçaria de numerosos matizes, mas onde faltavam justamente os matizes próprios às florestas. Tal é o universo novo e perecível que acaba de ser criado. Há de durar até a próxima catástrofe geológica que um novo pintor ou um novo escritor originais desencadearão."
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terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma mulher romântica.

Ao som de Tori Amos - Blood Roses
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Monstruosidades à parte, o relato é sóbrio, contendo nada além dos fatos. Assombros e caretas são tarefa de quem os lê e não de quem os escreve. Chegando aquele dia em casa, ele, o marido, ofegante, olhos fixos, mente nublada, incorreu logo em gritos perfurantes ao descobrir, morta como uma lagartixa esmagada, sua mulher. O sangue formava veias pelo chão e fazia os pisos pulsarem como órgãos. As paredes brancas, agora estavam salpicadas daquele esmalte rubro e cintilante e as flores, colocadas num jarro transparente sob o centro da sala, outrora rosas brancas, se tornaram rosas rutilantes, tendo em suas pétalas o rubor inefável daquele vermelho orgânico. Tão óbvio como um objeto que se jogado do alto de um prédio tomba diretamente para o chão, o rapaz titubeou e quedou contra o piso, desmontando-se como um quebra-cabeça antes bem organizado. Peça após peça era arremesada ao chão quente e sanguíneo da sala de estar. A televisão ligada, dentro de sua tela a voz de um homem anunciando a eficácia de um sabão em pó. Ora ele pegava roupas brancas e manchava-as de molho de tomate ora ele as remexia já limpas em outra parte do cenário. Quem dera aquele sabão em pó pudesse ser tão eficaz diante da sujeira que se estendia diante da tela ligada, quem dera se sua eficácia fosse ainda maior ao ponto dele prever a sujeira e assim evitá-la. Pois lá estavam os dois corpos, na sala, como dois tapetes forrando o chão frio, um bem rubro e o outro branco como gesso. Nada sabemos até então. Caminhemos, pois, até o relógio que se encontra na parede e arranquemos o ponteiro de sua órbita tão segura.
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No prédio, naquele mesmo dia, houve uma confusão entre dois vizinhos, uma dessas pantomimas ridículas, porém, não menos teatrais. Um dos participantes limpava a sua janela quando, se descuidando de seus braços, deixou cair um vaso de barro repleto de rosas brancas e areia, e esse, atraído pela força oscilante da gravidade, inclinou-se na queda, atingindo assim a varanda recém -limpa do apartamento inferior, sujando todo o piso cândido da área de serviço do vizinho do térreo. O vizinho, enfurecido como se tivesse sido atingido na cabeça pelo vaso de barro, correu até a janela do quarto e descobrindo o outro ainda estatelado em sua janela, fez-lhe os mais estridentes gestos, se utilizando nessas reclamações de urros que a linguagem humana não desconhecia por completo. Onomatopéias entre os dois - como se se tratasse de uma briga entre sujeitos mudos - foi o estopim para que todos os habitantes do prédio se debruçassem sob suas janelas e assistissem ao espetáculo, como se ocupassem camarotes e estivessem apreciando uma ópera confortavelmente extemporânea. O prédio se encontrava cercado de muitos outros prédios, como bem o sabem os leitores que moram nessas áreas urbanas, onde tudo se assemelha perfeitamente a uma cidade construída a partir de caixas de fósforos por uma criança entediada. Da janela de um desses outros prédios surgiu tardia e curiosamente uma moça, que lançou seus dois olhos cansados em direção a pantomima, se debruçando e passando a assistir a rusga entre os dois vizinhos. Mas ela, ao invés de se acomodar com o espetáculo, queria, além de observar o que já estava ocorrendo, descobrir a gênese de tão ordinária cena. Ocorreu-lhe como um instinto - dessas vibrações que ocorrem as aranhas quando um inseto é capturado por sua teia - olhar diretamente para a varanda atingida pelo vaso. Seus olhos, magnetizados pelas rosas brancas que jaziam sob o piso embarrado da varanda, dera-lhe a sensação de estar, pela primeira vez, diante de estrelas, e ela se apaixonou pelas rosas brancas. Enquanto todos se regozijavam com a briga que nunca atingia seu fim, ela se debruçava não mais sob sua janela, mas sob um mundo paralelo àquele, onde só existia um céu que a enovelava em suas nuvens e a levava flutuando até as rosas brancas. De repente, como se uma mão estalasse diante de seu delírio dois dedos e produzisse o barulho irritante e momentâneo dos estalos, ela acordou e lembrou-se da panela no fogo. Correu até o fogão, sem no entanto tirar seus pensamentos de cima das rosas brancas.
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Algum tempo depois, lá estava ela debruçada novamente sob sua janela, ainda a namorar aquelas rosas. Os dois vizinhos ainda discutiam, porém o público não era mais o mesmo, e como toda peça necessita de seus expectadores ávidos por mais encenações grandiosas, teve fim aquilo que parecia interminável, e os dois voltaram para dentro de seus camarins, deixando o palco que imediatamente se tornara aquele canto do prédio. Todos entraram para dentro de suas respectivas janelas, e o quadro antes tão movimentado e cheio de tons, se tornou monocromático. O vazio de tudo só fez destacar mais as rosas brancas, silenciosas e rutilantes. Tudo se escureceu e de dentro de seus olhos surgiu um holofote que iluminou e destacou com uma intensidade violenta aquelas rosas brancas. Enfim, sem suportar esse desejo que distendia seus nervos, ela fugiu de seus deveres na cozinha e correu até o térreo, ganhando as ruas rapidamente. Quando deu por si já estava atravessando o asfalto fumegante, calçando botas brancas de limpeza e levando na mão, como se fosse uma espada, uma vassoura. Queria as flores para si, e nada a demovia de seu objetivo. Ela poderia muito bem comprar um buquê na floricultura da esquina e assim desviar-se dessa tarefa tresloucada, mas o fato dessas flores se encontrarem como num pico de uma alta montanha era o que a fazia continuar, e no fundo a sua vassoura era realmente uma espada e ela um desses cavaleiros medievais que arriscam a própria vida em busca de um tesouro que possa agradar a amada. As rosas brancas não eram somente rosas brancas, mas sereias a cantar e conduzir um herói ao fundo do mar. E assim ela correu para esse destino brilhante e quando finalmente chegou e parou diante das grades da varanda que a separava das rosas brancas, um temor tomou conta de si e ela se apercebeu do que estava fazendo. Era tarde demais para recuar ou tentar compreender os motivos profundos e sombrios que a levara até ali. E então, de dentro de seu jaleco de mulher doméstica, ela retirou uma corda fina e azul, e dos seus cabelos um grampo, amarrou o grampo na ponta da corda e a atirou para dentro das grades, como um pescador atira contra o espelho do lago a sua linha de pesca. Como peixes, magicamente as rosas brancas foram atraídas até o grampo que cintilava no fim da corda e, novamente como peixes, foram presas por esse grampo. Ela arrastou novamente para junto de si o seu engenho e rapidamente desfez tudo, e correu com as rosas brancas numa mão e a vassoura na outra, deixando para trás sua corda e seu grampo. Atravessou a rua como um desses animais assustados com o movimento dos carros. Chegou novamente em sua cozinha, a panela já borbulhava.
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Colocou as rosas em um jarro transparente, encheu-o de água e, erguendo-o a altura dos olhos, viu a sua imagem refletida sob o vidro do jarro, sua imagem que também borbulhava entre as hastes das rosas brancas. Imediatamente colocou o jarro sob o centro da sala, depois voltou aos seus afazeres. Encantada com a aventura e com o prêmio desta, não percebeu que a porta ficara aberta e também não percebeu que, enquanto subia a escada apressada com suas rosas, outros passos também subiam logo atrás, passos tão rápidos e precisos como os seus. Um homem completamente desconhecido entrara dentro de sua casa, e, enquanto ela remexia a panela borbulhante, sentiu um olhar queimar sua nuca e não pode suportar os próprios nervos quando virou-se e viu o homem postado em frente a porta da cozinha a encará-la. Quando um grito ameaçou sair de sua garganta, o homem avançou rápido como um guepardo e a agarrou fortemente, levando a mão grossa e negra até sua boca, impedindo assim que qualquer som escapasse de seu nervosismo. Ela se remexia dentro de seus braços como um animal ensandecido. Eles giravam em uma luta violenta pela sala, ela tentando se livrar de seus braços e ele tentando se livrar de todos os movimentos dela. Atravessaram até a cozinha nessa luta, até que a faca recém-afiada e brilhante sob o armário se ofereceu com seu brilho lascivo aos olhos do homem e esse rapidamente a tomou com sua mão e...Ela se debatia horrivelmente, se contorcia sufocada em seu colo, e só pôde entrar novamente em si quando sentiu entrar por suas costas algo quente e doloroso, que se repetia sem cessar. Os movimentos epilépticos cessaram. Ela foi engolida pelo próprio corpo, e seu olhar, antes cintilante, era apagado e se assemelhava a duas velas recém-sopradas. O homem arrastou o corpo dela até a sala, deixando-o ao lado do jarro, que agora refletia sob sua superfície especular um rosto de pedra. Arrancou as roupas ensanguentadas e as trocou pela roupa do marido dela, saiu correndo pelas escadas e, ao chegar à rua, acenou para um táxi que mesmo antes de seu aceno já estacionava próximo ao canteiro de flores do prédio. O homem correu em direção ao táxi quando, de dentro do táxi, emergiu o marido de sua vítima, carregando entre as mãos um buquê de rosas brancas. O homem entrou dentro do táxi e, enquanto o outro acertava com o taxista, disse - Mas que belas rosas brancas você tem consigo, meu caro!
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sexta-feira, 18 de junho de 2010

Declare Independence

Don't let them do that to you!
Raise your flag




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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Os anos de aprendizado de todos nós.



"Toma, pois, está mão, este símbolo ainda solene e supérfluo."


quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ecce Somniu

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Acordou atordoado e ofegante naquela manhã fria, com palavras indecifráveis à beira da boca. Era como se ele voltasse de uma corrida matinal. Sonhar também cansa, pensou ele após tomar fôlego, ainda mais quando os sonhos são ginásticos como este, e levantou a mão direita no ar e olhou seus dedos, como se entre esses o sonho ainda escorresse feito líquido. Percebeu uma mancha na parede: um círculo verde, bem pequeno, e no centro do círculo um pontinho preto; e como quem fita as nuvens e subtraí delas as formas, ele viu na simples mancha a forma de um olho humano, um olho que se abria e se fechava fixado na parede branca, e cada vez mais o olhar dele encarava o suposto olhar da parede. Deixou de lado a fantasia de que a parede era sua espiã e abriu a persiana para que a luz da manhã tomasse o quarto inteiro. O sol dardejou contra seu rosto um raio fulminante e esse adquiriu uma tonalidade rubra e saudável. Seu corpo ainda oscilava diante da lembrança do sonho de outrora, e cada vez que uma daquelas imagens fragmentadas reluzia em sua mente, sua pele inteira se contraía, seus poros se tornavam vórtices a engolir o próprio corpo que os sustentava. Colocar este sonho num frasco e admirá-lo o dia inteiro era o seu maior desejo. E quem dera, ele pensou, vivêssemos em um futuro distante, onde um cirurgião subtraí de nossas mentes os sonhos e os coloca num vasilhame. E uma vez diante do sonho exposto num jarro transparente de água fria, ele o olharia com aquela mesma repulsa e aquele mesmo desejo obscuro que nos cala os pensamentos quando estamos diante de natimortos. Caiu de novo na cama, roçou-se nos lençóis brancos, rastejou lentamente sob o colchão como um caramujo. Ele não precisava mais correr para fora da cama, saltar no banho e sair pedalando os próprios pés em busca de condução para o trabalho, pois ele nem trabalhava mais. E era tão bom ter a sensação de que existe o tempo e de que esse tempo é nosso, não de outros, mas inteiramente nosso. Acordar, abrir olhos, ver o mundo e dele não recear nenhuma coerção temporal. Invadiu-lhe a mente a imagem de relógios derretendo, escorrendo e finalmente se transformando em uma única onda de água que inundava toda a sua casa. Salvador Dalí, ele disse, A persistência da memória, e sorriu, sorriu maliciosamente. Por um instante teve a sensação de estar flutuando dentro de um útero confortável e quente, ou, ele pensou em seguida, para continuar com essa atmosfera surrealista, estou dentro de um ovo, um ovo que me oferece tudo que o mundo se recusa a oferecer. O sonho voltava a brilhar em seus pensamentos, e ele desesperadamente tentava coordenar todas essas imagens, mas quando ele erguia os braços para tentar alcançá-las, elas se afastavam violentamente, e voavam, como um bando de pássaros irritados. Finalmente levantou da cama. Pousando os pés nas pantufas de carneiro, levitou até a cozinha, com a mesma indiferença de um fantasma diante das coisas sólidas. Ele perpassava paredes, móveis e portas fechadas, como se nada fosse real o suficiente para deter-lo e roubar-lhe o tempo. Não desviava de sofás, não abria maçanetas e nem derrubava ornamentos. E até os peixes no aquário da sala o olhavam estranhamente. Ele queria seu copo de leite seu pão fresquinho. Queria o cheiro do café espalhado por todas as partes da casa. Esqueceu a geladeira aberta, e quando na pia lavou seu copo, sentiu na nuca o queimar frio de uma brisa. Virou-se e encarou a geladeira arreganhada, cravou seus olhos no congelador, e por um momento, a geladeira inteira se metamorfoseou diante de seus olhos em montanhas e mais montanhas de gelo, em paisagens submersas na neve, calotas polares se deslocando de seus eixos e se lançando ao mar, ursos brancos e pinguins, o selvagem mundo dos esquimós. Como era bom ter o tempo para pensar paisagens novas até mesmo num simples congelador, o tempo para descansar os olhos de tudo aquilo que já se tornou banal de tanto se oferecer à vista. E quem na correria de uma vida tumultuada teria o tempo para imaginar, ao abrir a geladeira, num mundo selvagem de gelo? Não há tempo, para esses que correm tanto, pois correm tão depressa que se esquivam de si mesmos. Ele gostava do caráter inútil que sua vida vinha adquirindo desde que ele largara o emprego. Gostava de pensar que não tinha missão nenhuma para cumprir em lugar nenhum. Deixava bem claro para a sua imagem no espelho que ele era livre para sofrer e gozar dos frutos dessa terra e não esperava de maneira nenhuma por geografias de paraísos póstumos. Além do meu epitáfio, ele disse, não haverá nada além do pó, pois então vamos viver a vida aqui e agora, vamos escavar nas profundezas todas as belezas que as pessoas soterram para negar-se a si próprias. As pessoas não passam de escombros - arrebatou. Mas então ele pensava novamente sobre isso, sobre os escombros, e concluía que dentro desses escombros ainda havia coisas valiosas a serem recuperadas. E era essa a sua missão, apesar dele mesmo negar essa missão, coletar preciosidades que jazem por baixo dos tijolos caídos. Qualquer coisa serviria para recompor a vida, ele disse, qualquer caco de vidro, qualquer porcelana quebrada, qualquer garfo torto ou aparelho doméstico queimado, qualquer merda cintilante serviria para recompor a vida inteira. E assim ia tecendo planos, com a mesma vontade que sua mãe um dia bordou suas roupinhas de criança à luz de um abajur. E o sonho voltava cada vez mais dentro de sua mente. E o que antes eram relâmpagos, agora se tornava uma chuva de raios, que caiam sobre o solo de seu cérebro e lhe revelava cada cena antes esquecida ou fragmentada. Ele precisava exteriorizar esse sonho, colocá-lo para fora com a força de quem vomita. De repente, como a maçã que cai sobre a cabeça de Newton, ele teve um estalo epifânico. Correu até a sala, abriu gavetas, retirou delas muitos papéis e canetas, canetas de todas as cores. Espalhou tudo sob o sofá e respirou profundamente. Olhou os papéis e escolheu um dentre o emaranhado. Escolheu uma caneta de cor preta. Começou a desenhar. Os traços iam surgindo aqui e acolá. Mas ele hesitava cada vez que a imagem se revelava mais. Parou de desenhar. Olhou fixamente para o rascunho e pensou: Vamos! Vamos! Desenhe isso! Não se preocupe com esse papel, os papéis aceitam tudo! E voltou a desenhar. Os traços cada vez mais fortes, cada vez mais negros, ondulando como corpos que dançam. Parou ofegante. Olhou para o desenho. Da folha antes em branco emergiu uma pintura rupestre, pré-histórica, que diante de qualquer um não seria mais que uma réplica perfeita dos desenhos cravados sob as paredes de cavernas ancestrais. Fitou atentamente todo o desenho, e o que era antes esboço, ranhura, rabisco, tomou-lhe as mãos dos olhos e lhe revelou um corpo nu de homem.