domingo, 23 de maio de 2010

Montanhas e Maomés.

Vi-me afastada do centro de alguma
coisa que não sei dar nome.
HILDA HILST
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E ele estava lá, no cume, no pico, no alto da mais terrível montanha arquitetada para protegê-lo de sua própria existência. A mais alta e a mais gelada de todas as montanhas, ele pensava. Mas é assim, é exatamente assim que pensamos de algo que é nosso, que esse algo é o maior, o único, o verdadeiro. Mas havia montanhas vizinhas da dele que eram tão ou mais altas e terríveis que a sua. Ele não sabia que estava acompanhado nessa empreitada de isolamento profundo. Sua montanha fingia uma rigidez que não sustentava, e logo sua superfície rochosa e fixa ganhava o corpo e a flexibilidade de uma gelatina, e saía esquiando pela neve, até que - como um lápis que é apontado até a exaustão - derretia em meio ao gelo e se tornava um grande termas, quente e flutuante, pronto a se dissipar, como um fantasma diante da luz do amanhecer. E ele reconstruía a montanha, cada vez mais sólida, mais potente, mais rochosa, e tudo isso de uma inutilidade sem precedentes, pois logo ela se erguia em pé já entrava no doloroso processo de evanescência de sempre. Cada vez mais, cada vez mais ele lutava desesperadamente contra aquilo. Contra aquilo que fazia com que sua montanha se tornasse um gás implacavelmente suscetível. Uma vez, unindo forças, conseguiu soerguer a mais fixa de todas as montanhas. Era impossível que essa tombasse solo adentro ou derretesse feito um cristal liquido e escorrese na relva morta. Era a montanha mais alta e mais gelada, pensava ele, cujo tamanho e obscuridade assustaria o mais corajoso dos Hércules. Viveu nessa montanha, nessa paisagem inóspita, nessa atmosfera eterna que não descansava diante da noite e nem reabria os olhos diante do dia, um tempo sem tempo, que nenhum ponteiro em riste poderia determinar a duração. Viveu ali, pensando estar protegido de todas as coisas que existem. Ele próprio esquecera que existia, esquecera que sua pele era como uma teia de aranha, que seu corpo se colava e colava os lugares, que sua vida inteira era um grande adesivo pronto a ser fixado sobre algo, sobre alguém. Adesivos, somos adesivos, pensou estarrecido. Não, não queria essas verdades, queria outras, queria fabricar verdades que pudessem servir para o sistema teológico que ele sistematizava para si mesmo. E passou-se aquilo que na sua montanha não se poderia chamar de anos e nem séculos, mas apenas de tempo, tempo cru, tempo nu, tempo sem tempo, sem nome, sem marcador, um tempo que apenas passa, um tempo onde o segundo tem o mesmo valor que um milênio. E num desses tempos, ao caminhar até à beira de sua montanha, ele pôde ver alguém se movendo no fundo do abismo, ao pé da montanha. Um alpinista! Ele não poderia deixar que esse ser chegasse até o topo de sua montanha. Despenhou pedras enormes, provocou avalanches, tentou tornar o ar o mais rarefeito possível, para que o destemido alpinista morresse antes de atingir o topo. Tudo em vão! Desesperado, com o rosto deformado diante do horror, ele vê, de dentro do abismo sair uma mão que aperta fortemente a rocha e se esforça para trazer ao topo o corpo inteiro. Ele foge para o canto mais longínquo da montanha. E o corpo, já caminhando sobre o topo, é atraído pela sua figura esquálida, fugidia e espectral. Um homem das neves, pensaria todos. Mas o alpinista sabia bem o que era essa mancha branca que remexia pernas e braços, que tinha olhos fixos e cravados nos seus como duas lanças. E o alpinista ousou chegar tão perto, tão próximo, tão junto do outro, que num instante, vistos de longe, eram um só. E a montanha inteira se desfez nesse momento, fiapo por fiapo, como uma nuvem se desfiando no céu. E eles foram arremessados solo abaixo. Sem o chão que os sustentava outrora, agora eram seres em queda livre, e assim o permaneceriam até que um se colasse ao braço do outro - todos somos seres em queda livre e há no mundo a ilusão que diz que podemos parar essa queda se nos agarrarmos a algo, a alguém - e um se colou ao braço do outro. E nesse momento, quando os dedos do alpinista tocaram a pele rugosa e fria daquele braço esquelético, que mais parecia um graveto, o mundo inteiro se fechou neles e os trancou numa semente hermeticamente fechada, quente e segura. Num espaço tão pequeno como o da semente, os aborrecimentos seriam enormes. Mas ao menos os aborrecimentos existiriam, e esses aborrecimentos seriam a mais divertida das distrações. E fora da semente, as montanhas continuavam tomando cada vez mais espaço, crescendo como os desertos.
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domingo, 9 de maio de 2010

Fantasma

Tenho medo desta coisa escura
Que dorme em mim;
O dia todo sinto seu roçar suave e macio, sua maldade.
Sylvia Plath.

Alguma coisa escura
Gira em torno de mim.
Às vezes ela avança
Pousa em meus ombros
Sussurra ao pé do ouvido
Palavras de capetinha.

No outro, nenhum anjo
Para me aconselhar melhor.
Nenhum deus flutua
Em sua nuvem ao meu redor.

Estou só com essa flecha
Noturna, calibrada em seu
Arco de espuma contra
A cabeça, contra os miolos.

Espatifa-se o meu corpo
Inteiro. Tomba ao chão
Os meus cascos. Quem
Coletará? Quem ousará
Colar meus ossos novamente?

Tudo que respira
No mundo tem me
Causado dor.

Um cachorro também
É mãe. Com suas tetas
Encharcadas de leite
Até a raiz.

Formigas decifram os
Mesmos caminhos que
Meus passos percorrem.
Quem dirá? Quem dirá
Que existe um pai nas
Alturas esperando por nós?

Noé está morto e sua
Arca naufragou. Ninguém
Se salvará. O povo
Escolhido é o mundo inteiro.

Escolhidos pelo dedo
Em riste desta coisa
Escura que gira em
Torno de mim.

Às vezes ela avança,
Pousa em meus ombros,
Sussurra ao pé do ouvido
Palavras de capetinha.

No outro, nenhum anjo
para me aconselhar melhor.

Nenhuma estrela está
Imune de seus espinhos
Fulgurantes que espetam
No auge do dia.

Galileu está cego. Ousou
Fitar o sol, que como a morte
e como a Górgona, petrifica.

Alguma coisa escura
Gira em torno de mim.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Revolta

"Toda arte é uma revolta contra o destino do homem."
André Malraux.




Piscina pra que?
Tomo banho de chuva!


Mansões são mausoléus,
Habitantes, espantalhos tonsurados,
As cabeças, ninhadas de corvos.


Paredes auríferas?
Ouro puro? Diamantes
Ao chão feito formigas azuis?
Não quero.

Nem tudo que reluz é vida.

Mineralizar o corpo outra vez?
Se a madama sempre tomba de suas jóias
E se o anzol nunca pesca peixe de prata?
Desnecessário.

Tudo é tão vivo e rutilante
Que tua vitricidade constrange
O obscuro caráter do mundo.

O cheiro queimado de tuas nádegas
Derretendo pingos de plástico sob
O colo das prostitutas
Leva ao vômito toda mosca varejeira
Que passa e escuta: esse rumor
De ossos.

Sua boca,
Bueiro de cristais.
Suas orelhas,
âmbar selvagem.


Sua máquina de calcular não teme
A queima de estoque da morte?
Sua tela de luz plasmática não morde-te,
Mastiga-te,
Engole-te e
Regurtita-te?

Você, lixo industrial
Sem direito à reciclagem,
Forma tóxica sem a ductibilidade
Da geometria.

É insuportável ser pedra.

Com a lua eternamente imersa
Nos cabelos do sol.


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