sábado, 30 de janeiro de 2010

Histoire de l' oeil.


A abjeção nada mais é do que o avesso do sublime, ou até mesmo a sua forma pura, desmascarada. Não podemos negar que nutrimos por aquilo que nos causa repulsa uma resistência. Repousa nas formas repulsantes um desejo que insiste em nos atormentar - o desejo de perfurar a superfície dessas formas e nutrir nossos lugares íntimos com a seiva que sorveríamos delas. Vagamos entre os sonhos e denonimamos alguns desses sonhos de pesadelos. Essa é a resistência da qual falei. A resistência de admitir que esses pesadelos secretamente selecionados e soçobrados numa caixa à parte dos sonhos são, na verdade, os nossos desejos mais caros e mais espumantes. As pessoas, objetos e situações que nos levariam ao vômito por suas abjeções podem - num sutil oscilar de movimento - também nos levarem ao gozo. São com essas e não com outras palavras que eu sintetizo minha apreensão de História Do Olho. A leitura mais singular que eu fiz nesse mês, mais singular até que o teofágo incestuoso São Julião Hospitaleiro, de Flaubert. Um livro para espíritos livres - talvez diria Nietzsche.
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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O Cavalo de Charcot

Antônio Neto saíra correndo do estábulo, e logo atrás dele vinha Chiquinha, seguindo em sua direção. Haviam visto um cavalo branco a correr na elevação esverdeada e se puseram a perseguir o animal. A imagem do cavalo branco a correr na planície assemelhava-se a um quadro em movimento, e antes de saírem do estábulo, essa semelhança era mais aguda, porque a imagem era vista através da entrada do estábulo que emulava uma moldura. A imaginação das crianças, antes entorpecida pela calmaria da fazenda, despertara violentamente. As duas crianças perseguiam o cavalo branco envoltas num êxtase quase místico, derramadas em um torpor epifânico. O furor era causado porque a visão do cavalo branco era como um milagre naquelas paragens, onde a abundância de cavalos negros ostentava uma atmosfera profundamente uniforme e por isso tão suscetível ao mínimo toque de alguma outra cor. A andança do cavalo era como uma operação secreta da natureza. Um indispensável toque para banir dali, mesmo que por segundos, a banalidade da vida. As crianças que saíram do estábulo e se puseram a perseguir o cavalo branco, se puseram a perseguir, também, um certo tipo de mistério grandioso.

"Deus vive na natureza" - A mãe de Chiquinha respondia ao ser interrogada sobre o paradeiro do Senhor.

Para aquelas duas crianças a natureza inteira se resumia dentro dos olhos selvagens de um cavalo. E os olhos vibrantes de um cavalo branco eram não só a natureza inteira, mas o próprio Deus, residindo ali, exilado. O cavalo logo desaparecera, tragado pelo bosque. Esta memória inventada é a mais antiga dentro de mim. O brilho preso aqui, entre essas linhas, é o brilho que emana dos metais preciosos. A infância é o diamante que se desprendeu da gargantilha e soçobrou cachoeira adentro, para nunca mais ser encontrada.

Quando Chiquinha e Antônio Neto atingiram o alto da planície, encontraram ali, além do bosque, um rio de águas fortes. E a surpresa era que o cavalo branco se encontrava noutro lado do rio, exuberantemente iluminado pelo sol ou por um astro próprio. A cauda pendular do cavalo hipnotizou Chiquinha e essa avançou, desapercebida do perigo, de encontro ao cavalo. Foi quando Antônio Neto agarrou a mão de Chiquinha fortemente e a levou para junto de si, arrancando-lhe do dedo um anel que rolou para o fundo do rio. Os dois se ajoelharam à beira do rio em busca do anel perdido e encontraram nas águas, ao invés do anel, eles mesmos, refletidos. Foi quando Antônio Neto viu sob a água agitada do rio os olhos de Chiquinha, que ao contrário de fitarem o rio em si, fitava o reflexo de Antônio, profundamente. Ergueram-se, ruborizados. Fizeram cara de tristeza, para disfarçar um constrangimento, quando se deu a oportunidade: a ausência do cavalo branco noutro lado do rio. A seiva que escorre das árvores, os rios que escorrem das pedras, o sangue que escorre das veias, a infância escorria ali, na ausência do cavalo, na perda do anel e na descoberta da alteridade sob os reflexos no espelho d'água. Retornaram os dois, em silêncio, para o estábulo. Retornaram para os cavalos negros, para a mesmice da vida. A infância, ao contrário, permaneceu ali, ajoelhada sob o rio, contemplando o próprio reflexo. E como Narciso, ela teve um trágico fim.


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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Do topo da noite.

Mimetizando um pato, era a maneira como ele caminhava. O asfalto fumegando e suas botas lado a lado, sem nunca perderem a simetria congénita dos passos largos. Era um fim de tarde melancólico e estranhamente propício ao surgimento daqueles singulares pensamentos tortuosos, que ao contrário de causar-lhe o desconforto, torturava-o antes pela sensação de liberdade que evocavam do que através da moléstia. Era como se ele estivesse livre para andar onde quer que fosse dentro de si mesmo. O coração latejava exorbitantemente e ele se sentia vizinho dos vivos e vizinho dos mortos. Naquele instante ele não estava vivo e muito menos morto, estava obscuramente inclassificável. Sentia seu corpo desvanecer, e num segundo eterizava-se todo. Era um fantasma oscilante. Um ser que vive entremeios, entrebrechas, entremundos. Sua mente estava clara e organizada alfabeticamente, e isso o assustava. Era a lucidez dos fatos que transformava tudo em loucura. No gomo de suas mãos havia um papel que ele apertava fortemente, apertava até o papel adquirir aquela forma assimétrica arredondada. O sol ainda quente o fazia suar muito pelo rosto, e as lágrimas que emergiam de seus olhos se confundiam entre as gotas de suor. Não se sabia mais o que era tristeza e o que era fraqueza, e a natureza talvez forjasse esse símile propositadamente, e se aproveitava do exemplo dotado de rigor científico para demonstrar a tênue e talvez inexistente diferença entre esses dois sentimentos. Às vezes ele parava e olhava fixamente para o céu, captando alguma nuvem e cedendo à ela formas, relevos e texturas elegantes. Sua vida nunca mais seria a mesma depois daquele momento e ele já ouvia os burburinhos das mudanças que se aproximavam. Elas não chegavam como pessoas, através das estradas, e sim como o sangue, percorrendo as veias do corpo até chegar à superfície da realidade e tombarem sobre ele. Reabriu as mãos que já estavam petrificadas e perfurou o papel com os olhos. Desdobrou e confirmou como que pela segunda vez a única prova concreta do fato. Era realmente verdadeiro, segundo o que dizia o papel. Ele estava infestado de gafanhotos, e seu corpo era um recipiente fresco para abrigar aqueles seres espiralados. Brancos como a nuvem que ele fitara agora pouco, e perniciosos como serpentes. É injusto, ele pensava, eu me protegia tanto. Mas tão logo ele percebeu que a justiça não é a ordem natural do mundo, percebeu que o que reina na Terra é uma entropia que não beneficia os bons, os justos e cuidadosos, que não beneficia ninguém, mas carrega em si uma impessoalidade excepcional e, aos olhos humanos, até cruel. Desistiu de procurar os culpados em si e ao seu redor, e verificou o crepúsculo que anunciava não só o fim do dia, como também o fim de uma cadeia de ideias acerca da vida e do lugar que ela ocupa no universo. Continuou o seu trajeto e atirou para trás a bola de papel, que ainda rastejou por segundos sob o asfalto quente, provavelmente levada pelo vento ou impulsionada pelo imperativo perverso de arrancar de sua vítima alguns suspiros mais. Caminhou rapidamente, e daqui um pouco, já estava correndo. Corria veloz como um cavalo. Atravessou a cidade instantaneamente e ganhou os bosques, onde ainda havia a chance de se perder. Subiu as colinas até chegar a um pico negro composto por duas rochas gêmeas , e ali ficou a contemplar a cidade ao longe. As luzes das ruas e das casas se acenderam e ele por pouco não uivou quando a lua levantou no céu. Perscrutou uma luz em particular. Uma luz azul e intensa que escapava de uma janela semiaberta. Fitou a luz por um longo tempo até perder de vista tudo ao redor dela e o mundo inteiro se fechar, restando somente a luz flutuando no vazio. Sentiu um tremor nas pernas e deu o nome àquela sensação de esperança. Era hora de voltar para a cidade.




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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Paleografia


No começo era o papel, ou melhor, no final. O papel se tornou a vida póstuma da Natureza. Tudo fora destruído. As árvores queimadas e os rios submersos dentro das profundezas das árvores. As cidades se tornaram submersas dentro de outras cidades, e assim, com o número vasto de cidades, se tornou uma caixa dentro de outra caixa com ares de infinito. O peso dos séculos tombou sobre este lugar e no sitio pós-destruído houve inumerosas novas destruições. Aqueles tipos de destruições cuja as garras e somente as garras do tempo são capazes de promover. Houveram então as milhões e milhões de horas, e seguida delas, os milhões e milhões de dias, e para além deles, os milhões e milhões de meses. E os milhões e milhões de anos correram insolitamente por entre esses nomes. E como tudo era criação de mentes cuja as consciências não se sentavam mais sob o trono daquele lugar, o tempo parou de funcionar. A invenção desinventou-se. E o que foi deixado para trás era um vazio preenchido de elementos anônimos. O papel, único sobrevivente desse nano desastre cósmico, ganhou os espaços, e para além deles, o universo. Percorrendo distâncias insondáveis e num período de horas incronometráveis, os papeis ganharam novos mundos e despencaram dos céus desses outros mundos como um estranho evento meteorológico. Flutuaram sob outras paragens e ganharam atenção especial de certos seres que aqui, neste relato, são impossíveis de se descreverem. Iniciou-se nos confins do universo uma obsessiva e minuciosa Paleografia. A escrita guardou e recriou a natureza humana.


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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Fragmento retirado de um dia morto.

É o vazio. É o vazio inerente à vida que me despedaça. Essa inanição pulsando no peito como se fosse algo. Pretendendo ser algo. Mas não é nada. É o nada. É o vazio. As horas, os dias, as vozes - tudo soa oco. Oco como a realidade. Retiro do bolso um rolo de papel e anoto: "Quanto mais se tem, mais se quer. Quanto mais se descobre, menos se compreende. Quanto maior é a dose de sabedoria, maior também é a dose de ignorância. O frasco da lucidez é o frasco da loucura. O homem sábio é um homem duplamente tolo. Sua duplicidade consiste na inverossimilhança do mundo. Quanto maior é o seu passo em direção ao objeto, maior é o passo do objeto em seu recuo. Algumas vezes quando pensa ter alcançado o objeto, o objeto então se desfaz na sua frente como um punhado de pó levado pelo vento. O homem se olha em algum reflexo e se descobre uma espécie de bobo da corte. O objeto não se permite conhecer. Descobre que o objeto jogou com ele o tempo todo e que o mundo não passa de um tabuleiro sordidamente ordenado rumo à derrota dos homens." É o vazio da vida que me despedaça.


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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Somewhere in hell, he types still.

Um vasto. Um incrivelmente vasto e longínquo deserto - eis o futuro diante de mim. Minhas pinceladas alcançam pequenas distâncias e o restante permanece pálido, pálido e cru. A noite tomba das alturas e eu me vejo cada vez mais engendrado nessa discórdia. Vou seguindo, em sonhos ou acordado, vou seguindo e dizendo não à coisas que me parecem absurdamente incoerentes. É como se já me bastasse a própria vida e sua incongruência intrínseca e de resto eu não suportasse mais a tamanha desunião de tudo. É vasto. É incrivelmente vasto essa lacuna no peito da noite. Tento andar sobre a água. Tento curar cegos. Tento ressuscitar os mortos, mas tudo que obtenho são lembranças, são névoas. E a fumaça do cigarro forma formas diante de mim e diante dessas formas eu vejo os rostos, os rostos que amei. É quando me detenho e fechos os olhos, abro-os novamente, olho novamente e fixamente para as formas. Soltas no ar, como balões coloridos. Vejo uma criança suja sair de repente de dentro do meu estômago e correr em direção às formas. As formas se perdem, somem no ar ao toque da criança, somem para sempre. A criança se volta e me olha com uma face chorosa, anda cabisbaixa para frente e depois corre em direção ao meu abraço aberto e se espatifa em sombras sobre o meu peito. E então vem a vertigem novamente. Vem cavalgando os deuses e se volta contra mim com seu exército de pequenas verdades. Armaduras de aço. Lanças e escudos. Estão todas preparadas para o fim do mundo. Mas eu permaneço imóvel. Fixo como um céu. Sequer pisco os olhos, sequer respiro. Só faço olhar fixamente para as formas. Só faço frustrar meu peito com a vasta verdade das coisas. A vasta verdade de que a realidade é impetuosa e nossa mente uma farsante. E lá do fundo, no lugar íntimo, que brotam as sementes que crescem em um passe de mágica. Crescem e ganham a realidade. Tomam para si formas e mais uma vez caiem no chão podres e mortas. A realidade é uma árvore que não dá frutos, e os nossos frutos já nascem maduros demais para a umbrosa realidade. Eis o futuro diante de mim e sobre ele eu ouso caminhar. caminho em busca do tempo, da vida, do útero.


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sábado, 2 de janeiro de 2010

Crime & Castigo - Fragmento V


"A mentira é o único privilégio humano perante todos os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano. Nunca se chegou a nenhuma verdade sem antes haver mentido de antemão quatorze, e talvez até cento e quatorze vezes, e isso é uma espécie de honra; mas nós não somos capazes nem de mentir com inteligência! Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo. Mentir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no primeiro caso és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro! A verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos; exemplos houve. E hoje, o que nós fazemos? Todos nós, todos sem exceção, no que se refere à ciência, ao desenvolvimento, ao pensamento, aos inventos, aos ideais, aos desejos, ao liberalismo, à razão, à experiência e tudo, tudo, tudo, tudo, ainda estamos na primeira classe preparatória do colégio! Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia - e nos impregnamos! Não é verdade? Não é verdade o que estou falando? Não é verdade?"




Dostoievski.



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