sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O tempo

"O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele, mas ao beber vejo-lhe o leito de areia e percebo quão raso é. A fina corrente logo se esvai, mas a eternidade permanece. Gostaria de beber mais fundo e de pescar no céu, em cujo leito os seixos são estrelas. Não consigo contá-las. Ignoro a primeira letra do alfabeto. Tenho lamentado sempre não ser sábio como no dia em que nasci. A inteligência é um cutelo que penetra e corta caminho adentro o segredo das coisas. Não desejo ocupar minhas mãos mais do que o necessário. Minha cabeça é mãos e pés. Sinto que minhas melhores faculdades aí se concentram. O instinto me diz que a cabeça é um órgão para escavação, feito o focinho e as patas de certos bichos, e com a qual gostaria de explorar e cavar meu caminho através desses morros. Penso que o filão mais rico está por aí nas redondezas, e assim avalio por meio de varinha de condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui começarei a minerar"


(Thoreau, no maravilhoso Walden - A vida nos bosques.)

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terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Reminiscentia

"Há duas maneiras de não sofrer. A primeira parece fácil para a maioria das pessoas e consiste em aliar-se ao inferno até não mais senti-lo. A segunda é difícil e exige aprendizado contínuo e constante e consiste em saber quem e o quê, no meio do inferno, que não é inferno"

Há dias em que você fica mais suscetível às reminiscências. É como se o seu corpo se tornasse um aspirador de passados remotos, e concomitantemente um projetor de futuros inexistentes. Que é o futuro senão uma bocarra carniceira que destrói o presente e o cristaliza em passado? Meu passado hoje se postou diante de mim como um jogo de espelhos, um truque egípcio de resgatar imagens da superfície para o emaranhado confuso de raízes do presente. "O futuro é brilhante!" - eles dizem. Que futuro? Não existe futuro! Brilhante mesmo é o presente que em toda a sua inflexibilidade se torna um milagre até mesmo para os olhos mais agnósticos. Eu não entendo nada sobre o jogo do tempo, por isso, mantenho meu corpo fora do tabuleiro antigo de xadrez. Com isso eu ajo como se houvesse escolha, como se algum acidente fosse provocar o fim do tempo e tudo pararia de rodar e a eternidade flutuaria como uma bolha iridescente diante de nós. Mas nenhuma explosão pode parar as engrenagens desse velho mundo, pois elas são feitas de nuvens, e como todos sabem, nuvens são indestrutíveis.

O que eu sinto hoje é como uma vontade louca de se tornar um personagem de filme science-fiction e achar pelo caminho algum buraco-de-minhoca que me leve para um lugar distante chamado "meu passado". Isso é uma tolice tremenda, eu reconheço, mas é apenas as faíscas de tolices maiores que acompanham a condição de ser um animal pensante. "O único defeito do homem é pensar." Eu adoraria contratar um casal de detetives existencialistas para investigar a minha verdade, tal como o fez o personagem Albert Markovski no filme "I Love Huckabees". Para que eles encontrassem na minha rotina o vírus que evoca meu passado como se esse fosse uma espécie de deus.

Penso nas pessoas que já se foram, e sinto-me só por dentro, desolado e desértico, cheio de cactos e partículas finas de vaziez. Alguns pequenos terremotos acontecem no fluxo desses pensamentos, mas nenhum é o suficiente para interromper essa canalização involuntária de imagens mortas do passado. Sinto-me triste hoje, mas a minha tristeza carrega um toque de limão que deixa tudo mais sarcástico, que faz da infelicidade uma grande piada. Sinto saudades de um passado como todos os outros companheiros da minha espécie. Sinto falta dele como se lá eu fosse feliz e não soubesse. O lugar-comum utilizado por todos: eu era feliz e não sabia. "Há-há-há. Sério isso?" "Não, não é sério. é o efeito colateral das reminiscências, elas provocam isso sabia?" "Isso o que?" "Isso de achar que o presente é um grande engano e que somente o passado é valioso!" "Que coisa!" "Mas estou melhor agora, pois lembrei da passagem de um livro que li a pouco e que dizia "Deixe o passado como está; ele nada poderá fazer por você"


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sábado, 24 de janeiro de 2009

Pequenos Hábitos



Os extremos de um ser humano são lugares umbrosos para se fazerem uma visita, porém, são lugares necessários para que possamos entender o nosso próprio caos. O que falta no mundo não é água e nem paz, muito menos homens - como as mulheres de plástico vem afirmando aos montes - mas sim um pouco de lucidez. Um pouco é muito quando não se tem nada. A lucidez é como a energia elétrica: quando está em uso, podemos andar pela casa, pelas ruas e pelas praças iluminados por ela, e iluminação nessa era em que vivemos tem o estranho sinônimo de segurança, não esbarramos em árvores, não derrubamos nada e não atropelamos pessoas nas ruas, pois a luz é a matéria prima das cores e das atitudes lúcidas. Quando falta luz, somos obrigados a acendermos velas, que muitas vezes não são o suficiente para iluminar caminhos, e ninguém gosta de carregar velas, ninguém gosta de carregar nenhum peso em se tratando de descobrir caminhos. A luz falta, nós tateamos no escuro, derrubamos coisas e pessoas, e ambos quebram. Não há conserto para o que está quebrado, assim como não há cura para o que está morto. A lucidez é luz. E quando estamos iluminados, estamos lúcidos. A falta de lucidez é a escuridão, e dentro da escuridão surgem outros escuros; o útero do desequilíbrio mental que causa a ferida secular no mundo. Sem a lucidez estamos perdidos, criaturas que tateiam no escuro, em busca de uma parede para se apoiar. Não deixar que a lucidez se esvazie como uma balão furado deveria ser lei, pois uma vez que se vai, desperta aqueles pequenos demônios que vivem no subterrâneo de nossa pele, e uma vez despertos, é quando começa o caos.
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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Portokali

A parede é laranja e nós somos âmbar. A luz plasmática sorve nossos olhos e nos coagula em uma coisa só. O teto é branco e nós somos o vermelho da noite sobre a cidade. A cidade. A cidade que emerge e imergi dentro de ambos. Ambos os lados coagulados, imergindo no líquido íntimo da medula. Somos iguais e concomitantemente tão diferentes. Somos uma coisa só, partida em duas metades descoradas e podres, que só se tornam vívidas quando unidas em uma coisa só. É isso. É um continente inteiro de homeotérmicos. É um país governado por cores tresloucadas, que se misturam pelo céu a noite e desabam pela cidade. Quando você me olha, tudo se desfaz, pois sou fraco perante seus olhos. Uma canção de amor. Um lugar-comum, os romancistas o repetem. Eu o repito. Repito-me pelo ano inteiro, o decênio inteiro. A verdade é que sem sua gravidade eu me sinto o que eu realmente sou e, por você, me esqueço de ser. A parede é laranja e nós sequer existimos. Existência exige dor, e não há dor aqui. Desistimos de existir então. Existência é pouco, é muito pouco.

O mundo implodiu e tenta reaparecer toda vez que somos obrigados a existir. Uma luz leitosa invade os poros. Somos obrigados a existir. Se formos existentes, que seja breve então. Que seja um sopro. Verdade única é que ninguém suporta o peso existencial. Vamos partir em breve então, como dois condenados. Mas estaremos sempre aqui, coagulados em uma coisa só. A luz é branca e inerte, é paralela a nós mesmos. A parede é laranja e somos observados pelos olhos flutuantes do deus dos homens. Não somos homens, não somos mulheres, não somos humanos. Somos qualquer coisa. Qualquer coisa menos humana. Humanidade é terrível. Quando você me olha, o mundo inteiro não é nada. Nunca foi nada. É só uma criação em desuso; em constante rotação. É um mero parasita e nós também o somos. Parasitas de nós mesmos. A parede é laranja e o mundo inteiro é ineficaz.


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Para você.

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sábado, 17 de janeiro de 2009

O Curioso Caso Da Humanidade


Todos caminham na mesma direção, seguindo para o mesmo destino. Não importa se sua vida se baseia em um relógio que roda no sentido anti-horário. Não importa qual caminho você vai seguir, seja ele ensolarado, chuvoso, iridescente, multicolorido ou prosaico. Você chegará no ponto onde todos chegam. A percepção de que a humanidade caminha junta, querendo ou não caminhar, é quase um assombro para os olhos. É como perceber que não há cores lá fora. Que tudo é preto e branco como um filme noir e que as cores são uma grande invenção do cérebro humano. É mais ou menos assim, o assombro de compreender a ligação secreta da humanidade. Compreender que nós somos como um origami. Uma espécie de idéias grudadas à outras como se fossem coladas, como se fossem várias camadas de uma mesma pele. É isso que somos, uma grande pele se arrastando pelo mundo evanescente. Ontem uma vida inteira passou pelos meus olhos, hoje minha vida inteira passa pelos meus olhos. Uma vida inteira que não passa de uma caminhada rumo ao desconhecido.
"E agora, o que vem a seguir?"

domingo, 11 de janeiro de 2009

Sobre a complexidade do processo de criação

Há algo em mim que necessita ser compreendido antes mesmo de ser visto. Compreensão que necessita de texturas e para cada textura uma cor diferente. Camadas de propósitos definitivos mas não suficientemente polidos. A polidez é algo que procuro incessantemente em minha mente. Pobre a mente do homem, que tateia na escuridão elétrica a procura de uma concha resistente para habitar. Mas habitação é o que nos falta.

Sobre a criação de realidades alternativas, só tenho a dizer sobre como isso comporta um doloroso processo de fragmentação de idéias. Idéias essas que muitas vezes se apresentam em posturas inflexíveis. Esse é o verdadeiro mal das idéias, a inflexibilidade. Somos grávidos de idéias, "somos" no sentido de nunca sermos o inverso, não-grávidos. Estamos sempre dando à luz novos conceitos e horizontes, e a dificuldade de toda essa criação é o crescimento dela. Um sentimento paterno acerca de idéias nos invadem e somos inoculados pelo vírus do perfeccionismo homérico. Uma espécie de perfeccionismo que ostenta nada mais nada menos do que a perfeição coletiva de idéias. Não basta ter idéias, o que basta é agrupa-las no sentido certo, para que as idéias ganhem forma, corpo e uma vida autônoma.

Idéias são adeptas a eutánasia. E a morte de idéias é algo tão natural como a morte humana, chega como nada e se mostra no sentido que deve obter: A perfeição acerca delas. Morte de idéias em um sentido teísta é transforma-las em eternas. A morte de uma idéia não significa sua extinção, mas sim sua evolução na mais genuína concepção Darwinista. O que podemos obter é um material cada vez mais suscetível a polidez. Como uma lâmina que exige ser polida para cortar com mais facilidade - essa é a missão das idéias, cortarem com mais facilidade. A fragmentação de idéias é necessária , portanto, para estudos anatômicos e antropológicos sobre elas, porque antes mesmo da idéia ser idéia ela é a idéia de uma pessoa e idéias pessoais são como filhos, carregam em si toda uma complexa herança genética.

O que tenho a dizer é que há algo em mim que necessita de compreensão. Mas não uma compreensão de fatores extrínsecos, mas uma compreensão de fatores internos e fisiológicos. Esse algo em mim que necessita de compreensão se comporta agora como um órgão que recebe aversão dos outros órgãos. Não uma aversão de eudemonismos acerca da harmonia dos órgãos, mas uma aversão de ininteligíveis sentidos. O que necessito é ser aceito por mim mesmo e tal reconhecimento é tão ou mais doloroso do que qualquer outro reconhecimento. Tudo isso para obter o entendimento de que não há nada mais atroz do que a junção de idéias e o reconhecimento paterno sobre elas.

Devemos tomar cuidado acerca da posse de palavras. Elas sempre nos escapam. São como pássaros assustadiços que voam de nossas mãos. Palavras são solitárias, e a vida em comunidade não as apetecem. O exercício de amontoa-las é doloroso e exige o âmago da paciência, provocando uma dor de crucificação. Escrever é um ensaio sobre a morte.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Extrato I - O Fio Da Memória

Eram educados os meninos na fila indiana de entrada ao colégio. Eram minuciosamente educados. Eram quase irreais de tanta educação. As árvores ao redor, balançavam seus corpos na inércia do tempo, pois, era um dia sem vento, sem distrações que movimentam os fios capilares. Eram quase irreais os meninos na fila indiana de entrada ao colégio. Eram quase criaturas idílicas, que se movimentavam ao som de algum apito interno, que maquinalmente controlava movimentos precisos e... educados, claro.

Os meninos formavam três filas idênticas, compostas exatamente por 15 meninos em cada fileira. Eram azuis os uniformes dos meninos, camisetas coladas de um azul céu e boinas e calças de um azul profundo, quase tocante, quase emocionalmente tocante.

Era um dia claro, claro como uma fotografia ao sol. Olhar de longe a cena dos meninos na fila indiana era artisticamente emocional. Os filetes do sol invadiam os olhares fixos dos meninos e revelavam uma melancolia pitoresca e ancestral. Os meninos eram um quadro paisagístico em movimento.


Ordenados como um exército poético, um exército pronto a jorrar palavras cortantes ao tempo. Mais ao tempo do que ao espaço, porque, de alguma forma, não havia espaço entre os meninos, mas só tempo. Um tempo senil, que marcava eletricamente uma memória

A vida que vivemos em apenas uma lufada de vento.

O exército de meninos começava a se movimentar. Como um relógio na perfeição horária. Eles iam. Passo a passo, como se estivessem reaprendendo a andar. Eles caminhavam em direção ao colégio. Eles caminhavam em direção a um buraco de negrume intenso que se formava no vão de entrada do colégio. Logo, eles desapareceriam para sempre daquela imagem. Logo, o sol não iria tocar aqueles olhares novamente. Logo, portanto, tudo seria memória de um observador comovido com a velocidade do tempo. Com a velocidade das mudanças que ocorrem dentro das
camadas finas de cada segundo.

Eles eram engolidos um a um, pela escuridão do vão da entrada. Eles eram conduzidos um a um, para o destino incerto e inexorável do minuto a seguir. Eles estavam secretamente apavorados em suas ínfimas infâncias. Eles sabiam, discretamente, que o tempo os movimentava ali. Mais o tempo do que o espaço. Pois, espaço não havia ali, só o tempo dentro de outro tempo e assim, seguindo, um dentro do outro, como camadas perpetuas de algum mundo subterrâneo composto por memórias.

Nenhuma fotografia foi tirada ali. Nada sobreviveu para eternizar o azul profundo e tocante das boinas e calças dos meninos.

Eles, finalmente, desapareceram daquele pedaço de chão alvo e ensolarado, quase um deserto urbano. E desertos urbanos, como todos sabem, nunca param de crescer. Eles invadem seu quintal, sua casa, seus quartos. Os desertos urbanos invadem você.

Mas algo havia mudado ali. Alguma coisa se alterou diante do movimento brusco e belo da andança dos meninos. Alguma coisa nunca mais será a mesma. Algo invisível, mas palpável. Algo estridente como um grito, conduzido pelo fio da memória que acompanha cada um, desde o nascimento até a morte. As teias das aranhas que tecem o destino inacreditável de todos. Os fios da memória guardaram ali, a beleza pungente do movimento do tempo. Que engole, vezes educado ou vezes insuportavelmente, cada momento dado. Provando assim, que somente os flashes calculados de máquinas fotográficas guardam o imperecível de nós. Mas lembrando assim, que o imperecível é, portanto, também imutável. Mas o perecível guarda em si, a beleza artística do movimento. Da locomoção. O fio da memória, portanto, guarda o que, de alguma forma, foi estabelecido com apenas uma função: o relembrar.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Vertigo

Por toda minha vida eu senti uma vertigem. Uma misantropia para com todos. Uma espécie de negação à sociedade e ao meu humanismo intrínseco. Eu não sei que vermes anti-sociais ocupam meu estômago ou que espécie de serotonina reguladora de seleção natural é fabricada em meu cérebro. Eu não sei nada disso. Porque, talvez, não me é permitido saber tais coisas. Como não é permitido saber se há um fim no universo, se a vida foi criada do nada, se estamos aqui por acaso ou não, se somos apenas matéria escatológica ou a réplica imperfeita de algum Deus. Não me é permitido saber de onde, de que buraco, vem essa misantropia para com o mundo. Uma forma de negação involuntária a minha vontade, uma forma autônoma de vida que se esconde ou se mostra muito entre minhas vísceras. Tem algo a ver com o DNA isso que carrego? é a marca de uma geração de misantropos passados? é a insígnia de uma sociedade subterrânea que é considerada como um ser mamífero do subsolo conhecido como rato? O que é isso que eu carrego? um relógio? uma bomba? um condão de maldição? O que jorra em minhas veias é sangue ou redenção? São tantas perguntas e, por mais que eu saiba que para todas elas só existe uma resposta, eu faço questão da fragmentação. Foi assim que alguém me criou, alguém me criou para fragmentar as coisas. sentir cada pedaço de cada minuto segundo milésimo. sentir o gosto salgado e doce da existência terrena. carregar o desejo ínfimo de uma existência extraterrena. Carregar a esperança de uma alma aprisionada pelo corpo. Carregar uma vertigem. Uma vertigem.

"This is so disgusting"

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