segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Johnny vai à guerra


Uma das reflexões cinematográficas mais sombrias já feitas sobre o absurdo da guerra. A rigor, é mais um pesadelo do que um filme, e a sensação que deixa no expectador sensível é uma das mais atrozes. Reduzido à "um pedaço de carne com vida", o personagem Johnny está preso a cama de um sinistro hospital. Após sofrer a explosão de uma granada no campo de batalha, perdendo braços e pernas e tendo a metade do rosto desfigurada, o personagem "acorda" e percebe que perdeu sua mobilidade e sentidos. Porém, ainda vive dentro do seu corpo uma consciência que tem pensamentos e memória, e é a partir dessa fração de consciência, alojada no toco pensante, que seremos introduzidos não à realidade concreta da guerra, mas antes (e o que é pior) ao extrato subjetivo de uma experiência-limite.
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Presa ao próprio corpo, a voz da consciência de Johnny toma conhecimento de sua situação inaudita, iniciando assim um monólogo estarrecedor. A biografia do personagem começa a ser delineada, e ao contrário de uma história coerente, somos arremessados contra uma memória estilhaçada, que irá atualizar o mórbido projeto machadiano de narrar a própria vida de dentro do sepulcro. A singularidade da experiência de Johnny lança luz à experiência moderna onde o corpo se tornou o túmulo. No cinema contemporâneo podemos encontrar um símile dessa nova espécie de tragédia engendrada pela imaginação febril de um século prodigioso em guerras e massacres de toda ordem. Trata-se do sutil O escafandro e a borboleta, filme de rara beleza e melancolia. O que difere esse filme francês do tortuoso Johnny Got His Gun (título original do filme) é que, enquanto no segundo a beleza é tristeza e a melancolia é envolvida numa serenidade catastrófica, permitindo ao expectador uma espécie de catarse solidária com o personagem; no primeiro toda a melancolia foi proscrita, dando lugar a uma tensão quase insuportável; a beleza é convulsiva (como queria Breton. As referências ao movimento surrealista não param por aí) e a solidariedade com o personagem é, antes de tudo, uma identificação completa. Johnny cativo a uma maca, depositado em um quarto aos fundos do hospital, "para que ninguém o veja", com os braços e as pernas amputados, o rosto desfigurado, um toco de gente que ainda ousa pensar em se livrar de sua situação hedionda, é o próprio homem contemporâneo se debatendo em sua incapacidade crônica de enfrentar um mundo onde todos as referências foram devastadas do "horizonte do provável".
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Difícil dar conta da magnitude de um filme como Johnny vai à guerra. Do monstro Frankenstein, de Mary Shelley, que permanece escondido dentro de um armário burguês observando a vida dos outros por uma única fresta, até as maquinações estupendas de uma imaginação como a de Kafka, culminando na apatia extrema de um Mersault ou na náusea diante do mundo de um Roquentin, ou seja, uma galeria de personagens-limites, não fica difícil descobrir a gênese de um Johnny: filho de um mundo devastado, onde a vida se retirou para dar lugar a uma tentativa fátua de sobreviver ao caos. É fácil soerguer o corpo quando levamos uma queda, mas o que fazer quando o corpo se tornou a própria queda? Como disse Flaubert diante do tribunal que julgava seu mais famoso romance: "Madame Bovary c'est moi!", podemos, se formos sinceros o suficiente, gritar: "Johnny somos nós."


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