quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ecce Somniu

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Acordou atordoado e ofegante naquela manhã fria, com palavras indecifráveis à beira da boca. Era como se ele voltasse de uma corrida matinal. Sonhar também cansa, pensou ele após tomar fôlego, ainda mais quando os sonhos são ginásticos como este, e levantou a mão direita no ar e olhou seus dedos, como se entre esses o sonho ainda escorresse feito líquido. Percebeu uma mancha na parede: um círculo verde, bem pequeno, e no centro do círculo um pontinho preto; e como quem fita as nuvens e subtraí delas as formas, ele viu na simples mancha a forma de um olho humano, um olho que se abria e se fechava fixado na parede branca, e cada vez mais o olhar dele encarava o suposto olhar da parede. Deixou de lado a fantasia de que a parede era sua espiã e abriu a persiana para que a luz da manhã tomasse o quarto inteiro. O sol dardejou contra seu rosto um raio fulminante e esse adquiriu uma tonalidade rubra e saudável. Seu corpo ainda oscilava diante da lembrança do sonho de outrora, e cada vez que uma daquelas imagens fragmentadas reluzia em sua mente, sua pele inteira se contraía, seus poros se tornavam vórtices a engolir o próprio corpo que os sustentava. Colocar este sonho num frasco e admirá-lo o dia inteiro era o seu maior desejo. E quem dera, ele pensou, vivêssemos em um futuro distante, onde um cirurgião subtraí de nossas mentes os sonhos e os coloca num vasilhame. E uma vez diante do sonho exposto num jarro transparente de água fria, ele o olharia com aquela mesma repulsa e aquele mesmo desejo obscuro que nos cala os pensamentos quando estamos diante de natimortos. Caiu de novo na cama, roçou-se nos lençóis brancos, rastejou lentamente sob o colchão como um caramujo. Ele não precisava mais correr para fora da cama, saltar no banho e sair pedalando os próprios pés em busca de condução para o trabalho, pois ele nem trabalhava mais. E era tão bom ter a sensação de que existe o tempo e de que esse tempo é nosso, não de outros, mas inteiramente nosso. Acordar, abrir olhos, ver o mundo e dele não recear nenhuma coerção temporal. Invadiu-lhe a mente a imagem de relógios derretendo, escorrendo e finalmente se transformando em uma única onda de água que inundava toda a sua casa. Salvador Dalí, ele disse, A persistência da memória, e sorriu, sorriu maliciosamente. Por um instante teve a sensação de estar flutuando dentro de um útero confortável e quente, ou, ele pensou em seguida, para continuar com essa atmosfera surrealista, estou dentro de um ovo, um ovo que me oferece tudo que o mundo se recusa a oferecer. O sonho voltava a brilhar em seus pensamentos, e ele desesperadamente tentava coordenar todas essas imagens, mas quando ele erguia os braços para tentar alcançá-las, elas se afastavam violentamente, e voavam, como um bando de pássaros irritados. Finalmente levantou da cama. Pousando os pés nas pantufas de carneiro, levitou até a cozinha, com a mesma indiferença de um fantasma diante das coisas sólidas. Ele perpassava paredes, móveis e portas fechadas, como se nada fosse real o suficiente para deter-lo e roubar-lhe o tempo. Não desviava de sofás, não abria maçanetas e nem derrubava ornamentos. E até os peixes no aquário da sala o olhavam estranhamente. Ele queria seu copo de leite seu pão fresquinho. Queria o cheiro do café espalhado por todas as partes da casa. Esqueceu a geladeira aberta, e quando na pia lavou seu copo, sentiu na nuca o queimar frio de uma brisa. Virou-se e encarou a geladeira arreganhada, cravou seus olhos no congelador, e por um momento, a geladeira inteira se metamorfoseou diante de seus olhos em montanhas e mais montanhas de gelo, em paisagens submersas na neve, calotas polares se deslocando de seus eixos e se lançando ao mar, ursos brancos e pinguins, o selvagem mundo dos esquimós. Como era bom ter o tempo para pensar paisagens novas até mesmo num simples congelador, o tempo para descansar os olhos de tudo aquilo que já se tornou banal de tanto se oferecer à vista. E quem na correria de uma vida tumultuada teria o tempo para imaginar, ao abrir a geladeira, num mundo selvagem de gelo? Não há tempo, para esses que correm tanto, pois correm tão depressa que se esquivam de si mesmos. Ele gostava do caráter inútil que sua vida vinha adquirindo desde que ele largara o emprego. Gostava de pensar que não tinha missão nenhuma para cumprir em lugar nenhum. Deixava bem claro para a sua imagem no espelho que ele era livre para sofrer e gozar dos frutos dessa terra e não esperava de maneira nenhuma por geografias de paraísos póstumos. Além do meu epitáfio, ele disse, não haverá nada além do pó, pois então vamos viver a vida aqui e agora, vamos escavar nas profundezas todas as belezas que as pessoas soterram para negar-se a si próprias. As pessoas não passam de escombros - arrebatou. Mas então ele pensava novamente sobre isso, sobre os escombros, e concluía que dentro desses escombros ainda havia coisas valiosas a serem recuperadas. E era essa a sua missão, apesar dele mesmo negar essa missão, coletar preciosidades que jazem por baixo dos tijolos caídos. Qualquer coisa serviria para recompor a vida, ele disse, qualquer caco de vidro, qualquer porcelana quebrada, qualquer garfo torto ou aparelho doméstico queimado, qualquer merda cintilante serviria para recompor a vida inteira. E assim ia tecendo planos, com a mesma vontade que sua mãe um dia bordou suas roupinhas de criança à luz de um abajur. E o sonho voltava cada vez mais dentro de sua mente. E o que antes eram relâmpagos, agora se tornava uma chuva de raios, que caiam sobre o solo de seu cérebro e lhe revelava cada cena antes esquecida ou fragmentada. Ele precisava exteriorizar esse sonho, colocá-lo para fora com a força de quem vomita. De repente, como a maçã que cai sobre a cabeça de Newton, ele teve um estalo epifânico. Correu até a sala, abriu gavetas, retirou delas muitos papéis e canetas, canetas de todas as cores. Espalhou tudo sob o sofá e respirou profundamente. Olhou os papéis e escolheu um dentre o emaranhado. Escolheu uma caneta de cor preta. Começou a desenhar. Os traços iam surgindo aqui e acolá. Mas ele hesitava cada vez que a imagem se revelava mais. Parou de desenhar. Olhou fixamente para o rascunho e pensou: Vamos! Vamos! Desenhe isso! Não se preocupe com esse papel, os papéis aceitam tudo! E voltou a desenhar. Os traços cada vez mais fortes, cada vez mais negros, ondulando como corpos que dançam. Parou ofegante. Olhou para o desenho. Da folha antes em branco emergiu uma pintura rupestre, pré-histórica, que diante de qualquer um não seria mais que uma réplica perfeita dos desenhos cravados sob as paredes de cavernas ancestrais. Fitou atentamente todo o desenho, e o que era antes esboço, ranhura, rabisco, tomou-lhe as mãos dos olhos e lhe revelou um corpo nu de homem.

Um comentário:

alex.n disse...

Felipe, para de perder tempo e escreve logo um livro!