terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma mulher romântica.

Ao som de Tori Amos - Blood Roses
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Monstruosidades à parte, o relato é sóbrio, contendo nada além dos fatos. Assombros e caretas são tarefa de quem os lê e não de quem os escreve. Chegando aquele dia em casa, ele, o marido, ofegante, olhos fixos, mente nublada, incorreu logo em gritos perfurantes ao descobrir, morta como uma lagartixa esmagada, sua mulher. O sangue formava veias pelo chão e fazia os pisos pulsarem como órgãos. As paredes brancas, agora estavam salpicadas daquele esmalte rubro e cintilante e as flores, colocadas num jarro transparente sob o centro da sala, outrora rosas brancas, se tornaram rosas rutilantes, tendo em suas pétalas o rubor inefável daquele vermelho orgânico. Tão óbvio como um objeto que se jogado do alto de um prédio tomba diretamente para o chão, o rapaz titubeou e quedou contra o piso, desmontando-se como um quebra-cabeça antes bem organizado. Peça após peça era arremesada ao chão quente e sanguíneo da sala de estar. A televisão ligada, dentro de sua tela a voz de um homem anunciando a eficácia de um sabão em pó. Ora ele pegava roupas brancas e manchava-as de molho de tomate ora ele as remexia já limpas em outra parte do cenário. Quem dera aquele sabão em pó pudesse ser tão eficaz diante da sujeira que se estendia diante da tela ligada, quem dera se sua eficácia fosse ainda maior ao ponto dele prever a sujeira e assim evitá-la. Pois lá estavam os dois corpos, na sala, como dois tapetes forrando o chão frio, um bem rubro e o outro branco como gesso. Nada sabemos até então. Caminhemos, pois, até o relógio que se encontra na parede e arranquemos o ponteiro de sua órbita tão segura.
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No prédio, naquele mesmo dia, houve uma confusão entre dois vizinhos, uma dessas pantomimas ridículas, porém, não menos teatrais. Um dos participantes limpava a sua janela quando, se descuidando de seus braços, deixou cair um vaso de barro repleto de rosas brancas e areia, e esse, atraído pela força oscilante da gravidade, inclinou-se na queda, atingindo assim a varanda recém -limpa do apartamento inferior, sujando todo o piso cândido da área de serviço do vizinho do térreo. O vizinho, enfurecido como se tivesse sido atingido na cabeça pelo vaso de barro, correu até a janela do quarto e descobrindo o outro ainda estatelado em sua janela, fez-lhe os mais estridentes gestos, se utilizando nessas reclamações de urros que a linguagem humana não desconhecia por completo. Onomatopéias entre os dois - como se se tratasse de uma briga entre sujeitos mudos - foi o estopim para que todos os habitantes do prédio se debruçassem sob suas janelas e assistissem ao espetáculo, como se ocupassem camarotes e estivessem apreciando uma ópera confortavelmente extemporânea. O prédio se encontrava cercado de muitos outros prédios, como bem o sabem os leitores que moram nessas áreas urbanas, onde tudo se assemelha perfeitamente a uma cidade construída a partir de caixas de fósforos por uma criança entediada. Da janela de um desses outros prédios surgiu tardia e curiosamente uma moça, que lançou seus dois olhos cansados em direção a pantomima, se debruçando e passando a assistir a rusga entre os dois vizinhos. Mas ela, ao invés de se acomodar com o espetáculo, queria, além de observar o que já estava ocorrendo, descobrir a gênese de tão ordinária cena. Ocorreu-lhe como um instinto - dessas vibrações que ocorrem as aranhas quando um inseto é capturado por sua teia - olhar diretamente para a varanda atingida pelo vaso. Seus olhos, magnetizados pelas rosas brancas que jaziam sob o piso embarrado da varanda, dera-lhe a sensação de estar, pela primeira vez, diante de estrelas, e ela se apaixonou pelas rosas brancas. Enquanto todos se regozijavam com a briga que nunca atingia seu fim, ela se debruçava não mais sob sua janela, mas sob um mundo paralelo àquele, onde só existia um céu que a enovelava em suas nuvens e a levava flutuando até as rosas brancas. De repente, como se uma mão estalasse diante de seu delírio dois dedos e produzisse o barulho irritante e momentâneo dos estalos, ela acordou e lembrou-se da panela no fogo. Correu até o fogão, sem no entanto tirar seus pensamentos de cima das rosas brancas.
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Algum tempo depois, lá estava ela debruçada novamente sob sua janela, ainda a namorar aquelas rosas. Os dois vizinhos ainda discutiam, porém o público não era mais o mesmo, e como toda peça necessita de seus expectadores ávidos por mais encenações grandiosas, teve fim aquilo que parecia interminável, e os dois voltaram para dentro de seus camarins, deixando o palco que imediatamente se tornara aquele canto do prédio. Todos entraram para dentro de suas respectivas janelas, e o quadro antes tão movimentado e cheio de tons, se tornou monocromático. O vazio de tudo só fez destacar mais as rosas brancas, silenciosas e rutilantes. Tudo se escureceu e de dentro de seus olhos surgiu um holofote que iluminou e destacou com uma intensidade violenta aquelas rosas brancas. Enfim, sem suportar esse desejo que distendia seus nervos, ela fugiu de seus deveres na cozinha e correu até o térreo, ganhando as ruas rapidamente. Quando deu por si já estava atravessando o asfalto fumegante, calçando botas brancas de limpeza e levando na mão, como se fosse uma espada, uma vassoura. Queria as flores para si, e nada a demovia de seu objetivo. Ela poderia muito bem comprar um buquê na floricultura da esquina e assim desviar-se dessa tarefa tresloucada, mas o fato dessas flores se encontrarem como num pico de uma alta montanha era o que a fazia continuar, e no fundo a sua vassoura era realmente uma espada e ela um desses cavaleiros medievais que arriscam a própria vida em busca de um tesouro que possa agradar a amada. As rosas brancas não eram somente rosas brancas, mas sereias a cantar e conduzir um herói ao fundo do mar. E assim ela correu para esse destino brilhante e quando finalmente chegou e parou diante das grades da varanda que a separava das rosas brancas, um temor tomou conta de si e ela se apercebeu do que estava fazendo. Era tarde demais para recuar ou tentar compreender os motivos profundos e sombrios que a levara até ali. E então, de dentro de seu jaleco de mulher doméstica, ela retirou uma corda fina e azul, e dos seus cabelos um grampo, amarrou o grampo na ponta da corda e a atirou para dentro das grades, como um pescador atira contra o espelho do lago a sua linha de pesca. Como peixes, magicamente as rosas brancas foram atraídas até o grampo que cintilava no fim da corda e, novamente como peixes, foram presas por esse grampo. Ela arrastou novamente para junto de si o seu engenho e rapidamente desfez tudo, e correu com as rosas brancas numa mão e a vassoura na outra, deixando para trás sua corda e seu grampo. Atravessou a rua como um desses animais assustados com o movimento dos carros. Chegou novamente em sua cozinha, a panela já borbulhava.
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Colocou as rosas em um jarro transparente, encheu-o de água e, erguendo-o a altura dos olhos, viu a sua imagem refletida sob o vidro do jarro, sua imagem que também borbulhava entre as hastes das rosas brancas. Imediatamente colocou o jarro sob o centro da sala, depois voltou aos seus afazeres. Encantada com a aventura e com o prêmio desta, não percebeu que a porta ficara aberta e também não percebeu que, enquanto subia a escada apressada com suas rosas, outros passos também subiam logo atrás, passos tão rápidos e precisos como os seus. Um homem completamente desconhecido entrara dentro de sua casa, e, enquanto ela remexia a panela borbulhante, sentiu um olhar queimar sua nuca e não pode suportar os próprios nervos quando virou-se e viu o homem postado em frente a porta da cozinha a encará-la. Quando um grito ameaçou sair de sua garganta, o homem avançou rápido como um guepardo e a agarrou fortemente, levando a mão grossa e negra até sua boca, impedindo assim que qualquer som escapasse de seu nervosismo. Ela se remexia dentro de seus braços como um animal ensandecido. Eles giravam em uma luta violenta pela sala, ela tentando se livrar de seus braços e ele tentando se livrar de todos os movimentos dela. Atravessaram até a cozinha nessa luta, até que a faca recém-afiada e brilhante sob o armário se ofereceu com seu brilho lascivo aos olhos do homem e esse rapidamente a tomou com sua mão e...Ela se debatia horrivelmente, se contorcia sufocada em seu colo, e só pôde entrar novamente em si quando sentiu entrar por suas costas algo quente e doloroso, que se repetia sem cessar. Os movimentos epilépticos cessaram. Ela foi engolida pelo próprio corpo, e seu olhar, antes cintilante, era apagado e se assemelhava a duas velas recém-sopradas. O homem arrastou o corpo dela até a sala, deixando-o ao lado do jarro, que agora refletia sob sua superfície especular um rosto de pedra. Arrancou as roupas ensanguentadas e as trocou pela roupa do marido dela, saiu correndo pelas escadas e, ao chegar à rua, acenou para um táxi que mesmo antes de seu aceno já estacionava próximo ao canteiro de flores do prédio. O homem correu em direção ao táxi quando, de dentro do táxi, emergiu o marido de sua vítima, carregando entre as mãos um buquê de rosas brancas. O homem entrou dentro do táxi e, enquanto o outro acertava com o taxista, disse - Mas que belas rosas brancas você tem consigo, meu caro!
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2 comentários:

Pedro. disse...

Memórias póstumas de Andy Bell.
"Dá até vontade de morrer"

Te amo amo! =]
Recebeu notícias minhas?

Pedro. disse...

seus posts são quase tocáveis.
talvez pelo caráter universalesco.
os textos falam de Deus, dos homens e de ti mesmo... sem perder o mínimo de maestria.

amo-te! (e amei sua casa)