segunda-feira, 12 de julho de 2010

Vertigem

Com a caderneta e a caneta em mãos, Heberto chegou ao local do acidente. Uma nuvem de pessoas borrava - como uma mancha de tinta negra isolada no canto de um papel pardo - o lugar e era quase impossível transpor a multidão sem se confundir com ela, ao ponto de se perder a própria identidade e se mesclar ao todo, se tornar indivisível com ele. Porém, Heberto estava à serviço, não podia estancar diante do ocorrido como todos, e esses outros observavam a cena como se essa fosse uma pintura indiscutivelmente imóvel e terminada sobre uma tela, mas ele, ele precisava ultrapassar o posto da pessoa que simplesmente observa e se cala e pular direto para o posto da pessoa que observa, depois organiza o que viu, descreve e finalmente anuncia o ocorrido como quem anuncia em um comercial as qualidades de um automóvel ou a eficácia de um sabão em pó. Atravessando a multidão ele ia - como um explorador que cruza uma floresta - ceifando com as mãos as pessoas que impediam seu caminho - como se ceifasse folhas de bananeira ou relvas gigantes - seguia corredores estreitos de pura pele e suor, batia o rosto contra cabeças desconhecidas, sacudia os próprios cabelos com o medo de ter pego piolhos como se com esse gesto pudesse afastá-los, sufocava-se dentro da multidão, afogava-se entre as pessoas, depois emergia o rosto à superfície, respirava e mergulhava de novo. Finalmente chegou ao núcleo da multidão, parou diante do corpo coberto por uma lona negra e sentiu-se mal.
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Seus dois grandes olhos verdes saltaram das órbitas, sua pele enrijeceu, adquirindo o aspecto de uma pele de anfíbio, fria e viscosa, e, quando pegou a caneta e tentou escrever algo na caderneta viu sua mão tremular, sair da órbita de sua visão, sentiu que perdia o controle sobre os seus dedos, dedos que se remexiam tresloucadamente no ar como se a datilografar sob o teclado de uma máquina de escrever invisível. E como o tremor de sua mão era como que o epicentro, o anúncio de algo maior, de um terremoto, viu-se, de repente, envolvido em uma catástrofe geológica. De dentro de sua pele ele ouviu sair um estampido, o anúncio de que as placas tectônicas de sua vida estavam a se mover, destruindo velhos platôs, engolindo paisagens e devastando os vilarejos tão seguros de suas antigas convicções. "O que é que eu estou fazendo aqui? Por que terminei esse maldito curso de jornalismo e embarquei nesse barco furado? Que merda! O que significa ser essa espécie de anjo que anuncia todas essas mortes através dessas trombetas eletrônicas? Não! Não! Impossível!" O cameraman sacudiu Heberto no meio da multidão e disse-lhe para continuar, para dar dois passos contra o corpo ensacado e escrever na "maldita caderneta!" todas as informações que pudesse coletar. Ouviu-se um barulho estridente de sirene, o corpo de bombeiros chegava, anunciando em vermelho a ajuda que não era mais necessária. Os homens saíram de dentro da ambulância e correram em direção ao corpo inerte, um deles retirou de cima do corpo o manto que até então o ocultava, revelando assim, diante dos olhos de Heberto e de toda a multidão, a deformação que até então escondia-se abaixo da lona negra.
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Heberto tremulou quando a cortina subiu e revelou à seus olhos o corpo morto que, quando Heberto olhou melhor, bem poderia ser o corpo de um cachorro ou de um porco. O cameraman empurrava as costas de Heberto com o canhão da câmera e dizia-lhe palavras indecifráveis, palavras que chegavam até seus ouvidos como ondas sonoras imperceptíveis que só um morcego pudesse decifrar ou uma antena de rádio. As pessoas em volta se moviam com lentidão diante de Heberto e o tempo, tão veloz, parecia parar lentamente de se movimentar e - como um carro que atingiu uma alta velocidade e é bruscamente freado pelo motorista, derrapando na pista - o tempo derrapava sob o corpo de Heberto. "Anda babaca!" - gritava-lhe o cameraman, machucando a cabeça de Heberto com o canhão da câmera. Os bombeiros ergueram para o alto o corpo mutilado na maca e, nesse momento, Heberto foi acidentalmente jogado pelo cameraman contra o núcleo do círculo e caiu frente ao corpo, abrindo os olhos em seguida, deparou-se diante do rosto deformado do corpo, e dois olhos arregalados se encontraram com os seus. O mundo inteiro se fechou sobre ele, trancafiando-o como se dentro de um ovo. Hebertou despencou contra o asfalto, tombando exatamente no mesmo lugar que a vítima do acidente ocupara até então. Seu rosto, caindo de lado no asfalto, encontrou o restante do rosto da vítima e esses dois pedaços de rosto se acoplaram, formando um par de contrários, como um ying-yang orgânico, dividindo-se em uma parte morta e em outra viva. Caído no chão, ouviu um burburinho de vespas ao seu redor e dentro do burburinho a palavra "Idiota!" saiu voando até pousar em seus ouvidos. Um silêncio se fez e ele virou o seu corpo e depois o seu rosto de encontro ao céu. As nuvens vermelhas, o fim do dia, o ocaso cada vez mais denso deu-lhe a sensação que o mundo inteiro estava em chamas e que a boca do céu se abria constantemente para cuspir contra a terra bolas de fogo e desesperança.
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Um comentário:

Pedro. disse...

perfeito.

saudades! =]
(simplicidades)