terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O Cavalo de Charcot

Antônio Neto saíra correndo do estábulo, e logo atrás dele vinha Chiquinha, seguindo em sua direção. Haviam visto um cavalo branco a correr na elevação esverdeada e se puseram a perseguir o animal. A imagem do cavalo branco a correr na planície assemelhava-se a um quadro em movimento, e antes de saírem do estábulo, essa semelhança era mais aguda, porque a imagem era vista através da entrada do estábulo que emulava uma moldura. A imaginação das crianças, antes entorpecida pela calmaria da fazenda, despertara violentamente. As duas crianças perseguiam o cavalo branco envoltas num êxtase quase místico, derramadas em um torpor epifânico. O furor era causado porque a visão do cavalo branco era como um milagre naquelas paragens, onde a abundância de cavalos negros ostentava uma atmosfera profundamente uniforme e por isso tão suscetível ao mínimo toque de alguma outra cor. A andança do cavalo era como uma operação secreta da natureza. Um indispensável toque para banir dali, mesmo que por segundos, a banalidade da vida. As crianças que saíram do estábulo e se puseram a perseguir o cavalo branco, se puseram a perseguir, também, um certo tipo de mistério grandioso.

"Deus vive na natureza" - A mãe de Chiquinha respondia ao ser interrogada sobre o paradeiro do Senhor.

Para aquelas duas crianças a natureza inteira se resumia dentro dos olhos selvagens de um cavalo. E os olhos vibrantes de um cavalo branco eram não só a natureza inteira, mas o próprio Deus, residindo ali, exilado. O cavalo logo desaparecera, tragado pelo bosque. Esta memória inventada é a mais antiga dentro de mim. O brilho preso aqui, entre essas linhas, é o brilho que emana dos metais preciosos. A infância é o diamante que se desprendeu da gargantilha e soçobrou cachoeira adentro, para nunca mais ser encontrada.

Quando Chiquinha e Antônio Neto atingiram o alto da planície, encontraram ali, além do bosque, um rio de águas fortes. E a surpresa era que o cavalo branco se encontrava noutro lado do rio, exuberantemente iluminado pelo sol ou por um astro próprio. A cauda pendular do cavalo hipnotizou Chiquinha e essa avançou, desapercebida do perigo, de encontro ao cavalo. Foi quando Antônio Neto agarrou a mão de Chiquinha fortemente e a levou para junto de si, arrancando-lhe do dedo um anel que rolou para o fundo do rio. Os dois se ajoelharam à beira do rio em busca do anel perdido e encontraram nas águas, ao invés do anel, eles mesmos, refletidos. Foi quando Antônio Neto viu sob a água agitada do rio os olhos de Chiquinha, que ao contrário de fitarem o rio em si, fitava o reflexo de Antônio, profundamente. Ergueram-se, ruborizados. Fizeram cara de tristeza, para disfarçar um constrangimento, quando se deu a oportunidade: a ausência do cavalo branco noutro lado do rio. A seiva que escorre das árvores, os rios que escorrem das pedras, o sangue que escorre das veias, a infância escorria ali, na ausência do cavalo, na perda do anel e na descoberta da alteridade sob os reflexos no espelho d'água. Retornaram os dois, em silêncio, para o estábulo. Retornaram para os cavalos negros, para a mesmice da vida. A infância, ao contrário, permaneceu ali, ajoelhada sob o rio, contemplando o próprio reflexo. E como Narciso, ela teve um trágico fim.


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