segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Extrato I - O Fio Da Memória

Eram educados os meninos na fila indiana de entrada ao colégio. Eram minuciosamente educados. Eram quase irreais de tanta educação. As árvores ao redor, balançavam seus corpos na inércia do tempo, pois, era um dia sem vento, sem distrações que movimentam os fios capilares. Eram quase irreais os meninos na fila indiana de entrada ao colégio. Eram quase criaturas idílicas, que se movimentavam ao som de algum apito interno, que maquinalmente controlava movimentos precisos e... educados, claro.

Os meninos formavam três filas idênticas, compostas exatamente por 15 meninos em cada fileira. Eram azuis os uniformes dos meninos, camisetas coladas de um azul céu e boinas e calças de um azul profundo, quase tocante, quase emocionalmente tocante.

Era um dia claro, claro como uma fotografia ao sol. Olhar de longe a cena dos meninos na fila indiana era artisticamente emocional. Os filetes do sol invadiam os olhares fixos dos meninos e revelavam uma melancolia pitoresca e ancestral. Os meninos eram um quadro paisagístico em movimento.


Ordenados como um exército poético, um exército pronto a jorrar palavras cortantes ao tempo. Mais ao tempo do que ao espaço, porque, de alguma forma, não havia espaço entre os meninos, mas só tempo. Um tempo senil, que marcava eletricamente uma memória

A vida que vivemos em apenas uma lufada de vento.

O exército de meninos começava a se movimentar. Como um relógio na perfeição horária. Eles iam. Passo a passo, como se estivessem reaprendendo a andar. Eles caminhavam em direção ao colégio. Eles caminhavam em direção a um buraco de negrume intenso que se formava no vão de entrada do colégio. Logo, eles desapareceriam para sempre daquela imagem. Logo, o sol não iria tocar aqueles olhares novamente. Logo, portanto, tudo seria memória de um observador comovido com a velocidade do tempo. Com a velocidade das mudanças que ocorrem dentro das
camadas finas de cada segundo.

Eles eram engolidos um a um, pela escuridão do vão da entrada. Eles eram conduzidos um a um, para o destino incerto e inexorável do minuto a seguir. Eles estavam secretamente apavorados em suas ínfimas infâncias. Eles sabiam, discretamente, que o tempo os movimentava ali. Mais o tempo do que o espaço. Pois, espaço não havia ali, só o tempo dentro de outro tempo e assim, seguindo, um dentro do outro, como camadas perpetuas de algum mundo subterrâneo composto por memórias.

Nenhuma fotografia foi tirada ali. Nada sobreviveu para eternizar o azul profundo e tocante das boinas e calças dos meninos.

Eles, finalmente, desapareceram daquele pedaço de chão alvo e ensolarado, quase um deserto urbano. E desertos urbanos, como todos sabem, nunca param de crescer. Eles invadem seu quintal, sua casa, seus quartos. Os desertos urbanos invadem você.

Mas algo havia mudado ali. Alguma coisa se alterou diante do movimento brusco e belo da andança dos meninos. Alguma coisa nunca mais será a mesma. Algo invisível, mas palpável. Algo estridente como um grito, conduzido pelo fio da memória que acompanha cada um, desde o nascimento até a morte. As teias das aranhas que tecem o destino inacreditável de todos. Os fios da memória guardaram ali, a beleza pungente do movimento do tempo. Que engole, vezes educado ou vezes insuportavelmente, cada momento dado. Provando assim, que somente os flashes calculados de máquinas fotográficas guardam o imperecível de nós. Mas lembrando assim, que o imperecível é, portanto, também imutável. Mas o perecível guarda em si, a beleza artística do movimento. Da locomoção. O fio da memória, portanto, guarda o que, de alguma forma, foi estabelecido com apenas uma função: o relembrar.

Um comentário:

Anônimo disse...

as vezes nao ha como distinguir cores na lufada de vento. e como escrever sem acentos e entender a mensagem, tudo esta la, corretamente ordenado, como os meninos na fila. mas nada (e repito, nada) tem tanto poder quanto nos mesmos, sobre tudo que nos acompanha.


ps: eu era um dos meninos, era o sexto da segunda fileira.